Por Jéssica Paula Gillung
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Se pensarmos um pouco acerca da distribuição
dos organismos, facilmente podemos perceber que os seres vivos não ocorrem
uniformemente sobre a superfície da Terra. Pelo contrário, existem áreas que
possuem uma diversidade de espécies maior que outras áreas, enquanto há
espécies diferentes ocupando áreas semelhantes. Além disso, alguns grupos são restritos a uma dada
área, enquanto outros apresentam ampla distribuição. Porém, apenas afirmar que
esta ou aquela espécie é exclusiva de uma dada área não fornece explicação
sobre a razão de ela estar onde está.
Foi a
partir da tentativa de se compreender os padrões gerais de distribuição das
espécies, a relação da biota com suas áreas de distribuição e a própria relação
entre estas áreas é que surgiu a biogeografia, talvez a mais ampla, abrangente
e multidisciplinar das ciências biológicas. Existem três componentes que devem
ser avaliados em conjunto para o entendimento dos padrões de distribuição: espaço (área geográfica de ocorrência
dos organismos), tempo (eventos
históricos que influenciaram os padrões atuais) e forma (os grupos de organismos). Em suma, a biogeografia é a
ciência que estuda a distribuição geográfica dos seres vivos no espaço através
do tempo, com o objetivo de entender os padrões de organização espacial dos
organismos e os processos que resultaram em tais padrões (tais como
vicariância, dispersão e extinção). É uma disciplina complexa e multifacetada,
que relaciona informações de diversas outras ciências, tais como a geografia, geologia, ecologia, etc.
Não
é nosso objetivo fornecer um histórico muito detalhado, mas sim apresentar os
conceitos e idéias mais importantes e curiosas para que se compreenda que a biogeografia
não surgiu de sobressalto, de uma hora para outra. Pelo contrário, a disciplina
passou por um processo muito longo de construção, que se deu através do acúmulo
de contribuições de diversos pesquisadores, notadamente no século XVIII e XIX.
Sendo assim, podemos dividir a história de
formação da biogeografia em dois períodos muito distintos:
1)
o período pré-evolutivo, no qual se acreditava no fixismo das espécies, na
constância e estabilidade da Terra, em um centro de origem e dispersão; e 2)
o período evolutivo, que incorpora as idéias de mudanças tanto da biota
(evolução) quanto da própria Terra às explicações biogeográficas, resultando no
paradigma vicariante que serviu de base para a biogeografia histórica, que será
melhor detalhada no decorrer do texto.
O
desenvolvimento do pensamento biogeográfico
Desde muito cedo na história da
humanidade o homem já tinha a curiosidade de saber por que as espécies estão
onde estão. Diversos povos possuem explicações para a origem e distribuição
tanto do homem quanto das demais espécies, a maioria delas pautadas em
explicações religiosas. No entanto, as idéias iniciais trazem implícitos dois conceitos que perduraram durante
muito tempo como única explicação plausível para os padrões observados: a idéia
de centro de origem e o processo de dispersão. Acreditava-se
que todos os organismos surgiram em uma só área – o centro de origem – e que
posteriormente se dispersaram a partir dali, ocupando toda a superfície da
Terra (Fig. 1). Uma das mais antigas teorias biogeográficas é encontrada no
Livro do Gênesis. De acordo com ela, todos os organismos foram criados no Éden
e a partir daí se dispersaram para as outras regiões do globo. O mesmo
raciocínio se aplica à idéia da Arca de Noé (Fig. 2) e da Torre de Babel (Fig.
3): as espécies e povos, respectivamente, surgiram no centro de origem e então
se dispersaram e se diversificam a partir dele.
Fig.
2. O ingresso dos animais na Arca de Noé (Athanasius Kircher, 1675)
Fig.
3. A Torre de Babel (Athanasius Kircher, 1679)
Até então, a teoria biogeográfica fornecida
pela Bíblia parecia explicar satisfatoriamente a ocupação da Terra por homens,
animais e plantas após o dilúvio. No entanto, surgiram alguns problemas à
medida que mais informações eram agregadas ao conhecimento humano, tais como a
descoberta de novos continentes e de novas espécies. Nesse sentido, uma das
principais questões a serem respondidas pelos primeiros biogeógrafos era:
quantas e quais espécies Noé teria transportado em sua Arca? Uma das figuras
mais importantes nesse cenário foi o padre jesuíta Athanasius Kircher (Fig. 4),
que concluiu que Noé não levou consigo na Arca todos os animais, mas apenas
algumas espécies. As demais espécies de animais e também as plantas surgiram
por geração espontânea ou por hibridização entre espécies. Kircher não só
calculou e estabeleceu o tempo de duração do dilúvio, como também estabeleceu
as dimensões da arca, incluindo seus corredores, passagens e cômodos onde cada
espécie teria sido alojada. Ele considerou a existência de três andares na
embarcação e fez a planta de distribuição de todos os cômodos, tanto dos
espaços dos onde cada animal foi alocado, quanto dos locais de armazenamento de
água e alimento.
Fig. 4. Athanasius Kircher.
Mais
tarde, com a “descoberta” da América pelos europeus, surgiu a necessidade de se
remodelar as teorias da época para explicar a existência da fauna americana.
Como explicar a ocorrência de animais totalmente diferentes daqueles
encontrados na Europa? E como era possível encontrar animais a milhares de
quilômetros de distância do centro de origem? As primeiras hipóteses para se
explicar a dispersão dos animais do Velho para o Novo Mundo foram baseadas na
existência de pontes intercontinentais: uma ligação física entre a Europa e as
Américas que possibilitou o deslocamento de animais, mas que posteriormente
desapareceu (Fig. 5). E para justificar a existência de animais completamente
diferentes daqueles encontrados na Europa foi postulada a “cópula promíscua”
entre as espécies, segundo a qual as espécies puras, criadas diretamente por
Deus, se intercruzaram para gerar híbridos. Ou seja, as espécies puras, criadas
na Europa, foram cruzando-se e degenerando-se, dando origem às espécies
encontradas no Novo Mundo. Por exemplo, Kircher sugeriu que o tatu americano é
resultante do cruzamento entre a tartaruga e o porco-espinho.
Fig. 5. Atlântida, uma ponte situada entre a
África (à esquerda) e a América (à direita) (Athanasius Kircher, 1644).
Fig. 6. Carolus Linnaeus.
Posteriormente, Georges-Louis
Leclerc, conde de Buffon (1707 – 1788) (Fig. 7) examinou as espécies de
mamíferos do Velho Mundo conhecidas na época e mostrou que a maioria delas não
possuía correspondentes na América, isto é, eram espécies exclusivas do Velho
Mundo. A partir de suas descobertas foi formulada a Lei de Buffon, segundo a
qual diferentes regiões do globo, apesar de compartilharem as mesmas condições,
são habitadas por diferentes espécies de animais e plantas. Os estudos de Buffon sugerem causas históricas para
os padrões de distribuição, ou seja, ou o grupo de organismos surgiu naquela
dada área ou veio de outro lugar. No primeiro caso, se for uma espécie, implica
em dizer que a especiação ocorreu naquela área; no segundo caso, houve dispersão
e conseqüente colonização.
Fig. 7. Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon.
A biogeografia histórica
No entanto, foi apenas após a ampla aceitação da teoria da evolução que a biogeografia passou a ser concebida da forma como a entendemos atualmente. A teoria da evolução serviu de base para a construção de novos conceitos amplamente empregados hoje – tais como a vicariância – que serão discutidos a seguir.
Didaticamente, podemos subdividir a biogeografia em dois ramos principais:
No entanto, foi apenas após a ampla aceitação da teoria da evolução que a biogeografia passou a ser concebida da forma como a entendemos atualmente. A teoria da evolução serviu de base para a construção de novos conceitos amplamente empregados hoje – tais como a vicariância – que serão discutidos a seguir.
Didaticamente, podemos subdividir a biogeografia em dois ramos principais:
1) biogeografia ecológica,
responsável por estudar os processos a
curto prazo que atuam sobre o padrão de distribuição dos organismos em função
de suas adaptações às condições atuais do meio e
2)
biogeografia histórica, relacionada
com os processos históricos que atuam sobre o padrão de distribuição dos
organismos.
A biogeografia histórica nos mostra
que processos históricos de alterações no habitat podem ser usados para
explicar padrões de distribuição diferentes do esperado ao acaso. Ela apresenta diversos métodos que possibilitam a
reconstrução da história e do relacionamento entre as áreas, através do estudo
das espécies que as ocupam. Sua base está alicerçada na fusão das idéias de León Croizat (1894 - 1982) (Fig.
8) e de Alfred Wegener (1880 - 1930) (Fig. 9).
Croizat
foi um botânico italiano responsável por uma das mais importantes contribuições
à biogeografia:
o desenvolvimento da idéia de vicariância – a
fragmentação de uma população ancestral por uma barreira geográfica, levando ao
impedimento de fluxo gênico e posterior especiação. A proposição da vicariância
para explicar os padrões de distribuição foi um grande avanço em relação às
explicações dispersionistas em termos de capacidade de explanação e de teste.
Isso porque os eventos de dispersão são eventos individuais, pontuais, uma vez
que cada espécie tem sua própria capacidade e rota de dispersão. Por essa
razão, explicações dispersionistas não são passíveis de teste, pois não ocorrem
concomitantemente em dois organismos diferentes devido aos mesmos processos.
Eventos de vicariância, ao contrário, são eventos que envolvem vários táxons ao
mesmo tempo e por isso são passíveis de teste através da comparação com outros
grupos que ocupam a mesma área. Além do conceito de vicariância, Croizat é o autor de uma das mais célebres idéias
da biogeografia: “A Terra e a vida
evoluem juntas”. De acordo com ela, a biota e a área que abriga tal biota
apresentam histórias correlacionadas. Desse modo, a história geológica da Terra
pode fornecer subsídios para se compreender a história dos organismos, assim
como a história dos organismos pode ajudar-nos a entender a história do nosso
planeta.
Alfred
Wegener, por sua vez, foi um meteorologista e geólogo alemão responsável pela
proposição da teoria da Deriva
Continental, segundo a qual os continentes já estiveram unidos no passado,
formando um supercontinente chamado Pangea. Com o passar do tempo a Pangea
sofreu fragmentação e os blocos continentais resultantes foram afastando-se de
modo que as suas formas e posições modificaram-se até atingirem a conformação
atual. Wegener construiu sua teoria com base nas semelhanças dos contornos dos
continentes, que sugerem um encaixe, e também na similaridade entre fósseis
tanto de animais quanto de plantas encontrados em diferentes continentes. Ele
não foi o primeiro a sugerir que os continentes já estiveram unidos, mas foi o
primeiro a apresentar evidências extensas de vários campos de estudo que
comprovaram sua teoria. Essas evidências, aliadas a um conhecimento mais
profundo da geologia da Terra, hoje são reunidas na teoria da Tectônica de Placas. A crosta terrestre, segundo esta
teoria, seria formada por diversas placas rígidas que se movem umas em relação
às outras, sendo carreadas por lentas correntes de convecção existentes no
interior do planeta. O advento da tectônica de placas fez com que os
biogeógrafos mudassem o enfoque de suas explanações. A aceitação da mobilidade
dos continentes para explicar as distribuições biogeográficas dos organismos
fornece um meio de se testar as hipóteses de vicariância.
Fig. 8. Leon Croizat.
Fig. 9. Alfred Wegener.
Apesar
de sua enorme complexidade de conceitos, a biogeografia não é unicamente
importante no âmbito acadêmico, tampouco é restrita à agregação de informações
puramente empíricas. Sob o ponto de vista prático, a biogeografia é uma
ferramenta extremamente útil, por exemplo, para a conservação da
biodiversidade. Os métodos de reconstrução da história biogeográfica têm sido
muito valorizados no reconhecimento das áreas de endemismo, que são unidades
complexas e relevantes sob o ponto de vista histórico e evolutivo, e que,
portanto, devem ser preservadas. O panorama atual de escassez de recursos
destinados à criação e manutenção de unidades de conservação, aliada à pressão
no sentido de destruição de habitats, exige que as áreas a serem protegidas
sejam cuidadosamente escolhidas, o que é possível utilizando-se os métodos da
biogeografia histórica.
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Fonte das figuras:
Fig. 1: www.historycooperative.org/journals/ahr/110.5/images/smail_fig04b.gif
Fig. 2: www.kenjirookazaki.com/ arch/beyond/05Athanasius-Kircher
Fig. 3: www.anfrix.com/2006/03/turris-babel-athanasius-kircher/ Posts/anfrix_pic_02_2.jpg
Fig. 4: www.voynich.nu/img/ gallery/kircher.jpg
Fig. 5: www.rose-croix.org/ mediatheque/Video/images_atlantide/carte_atlantide_kircher.gif
Fig. 6: http://cr4.globalspec.com/ PostImages/200705/Carolus_Linnaeus_BA6426C3-C281-147D-7FDB4FD76FC18741.jpg
Fig. 7: http://institucional.us.es/ darwin09/buffon.jpg
Fig. 8: http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/thumb/6/6d/Leon_Croizat-ru.jpg/200px-Leon_Croizat-ru.jpg
Fig. 9: www.iki.rssi.ru/mirrors/stern/ earthmag/Figures/wegener.gif
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Fonte das figuras:
Fig. 1: www.historycooperative.org/journals/ahr/110.5/images/smail_fig04b.gif
Fig. 2: www.kenjirookazaki.com/
Fig. 3: www.anfrix.com/2006/03/turris-babel-athanasius-kircher/
Fig. 4: www.voynich.nu/img/
Fig. 5: www.rose-croix.org/
Fig. 6: http://cr4.globalspec.com/
Fig. 7: http://institucional.us.es/
Fig. 8: http://upload.wikimedia.org/
Fig. 9: www.iki.rssi.ru/mirrors/stern/
..
Para ler:
Em português:
Amorim, D.S. 1997. Elementos básicos de Sistemática Filogenética.
2a. ed. Ribeirão Preto, Sociedade Brasileira de Entomologia. 276 p.
Carvalho, C.J.B. 2004. Ferramentas atuais da Biogeografia histórica para
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Papavero, N.;
Teixeira, D.M. & Llorente-Bousquets, J. 1997. História da
Biogeografia no período Pré-evolutivo. São Paulo, Plêiade/Fapesp. 258 p.
Em inglês:
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Cuadernos del Instituto de Biología 37, Instituto de Biología, UNAM, México
D.F.
Sobre o autor:
Jéssica Paula Gillung, apaixonada por ciências naturais desde que se conhece por gente, decidiu já muito cedo na vida que a Biologia seria sua profissão. Concluiu sua graduação em 2008 na Universidade Federal do Paraná, onde descobriu o maravilhoso mundo dos insetos. Em 2009 ingressou no mestrado na Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação em Zoologia, atualmente no primeiro ano de curso. Amante da entomologia, seu objeto de estudo sempre foram os dípteros. Seu grupo de interesse é Acroceridae (Diptera), um pequeno grupo de moscas com biologia extremamente interessante, mas que carece de estudos aprofundados de Taxonomia e Sistemática. Por isso, seu projeto de pesquisa foca os aspectos taxonômicos do grupo, buscando compreender e organizar sua diversidade, em especial na região Neotropical.
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