terça-feira, 20 de abril de 2010

Porque as espécies estão onde estão?

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Por Jéssica Paula Gillung
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Se pensarmos um pouco acerca da distribuição dos organismos, facilmente podemos perceber que os seres vivos não ocorrem uniformemente sobre a superfície da Terra. Pelo contrário, existem áreas que possuem uma diversidade de espécies maior que outras áreas, enquanto há espécies diferentes ocupando áreas semelhantes. Além disso, alguns grupos são restritos a uma dada área, enquanto outros apresentam ampla distribuição. Porém, apenas afirmar que esta ou aquela espécie é exclusiva de uma dada área não fornece explicação sobre a razão de ela estar onde está.
            Foi a partir da tentativa de se compreender os padrões gerais de distribuição das espécies, a relação da biota com suas áreas de distribuição e a própria relação entre estas áreas é que surgiu a biogeografia, talvez a mais ampla, abrangente e multidisciplinar das ciências biológicas. Existem três componentes que devem ser avaliados em conjunto para o entendimento dos padrões de distribuição: espaço (área geográfica de ocorrência dos organismos), tempo (eventos históricos que influenciaram os padrões atuais) e forma (os grupos de organismos). Em suma, a biogeografia é a ciência que estuda a distribuição geográfica dos seres vivos no espaço através do tempo, com o objetivo de entender os padrões de organização espacial dos organismos e os processos que resultaram em tais padrões (tais como vicariância, dispersão e extinção). É uma disciplina complexa e multifacetada, que relaciona informações de diversas outras ciências, tais como a geografia, geologia, ecologia, etc.
            Não é nosso objetivo fornecer um histórico muito detalhado, mas sim apresentar os conceitos e idéias mais importantes e curiosas para que se compreenda que a biogeografia não surgiu de sobressalto, de uma hora para outra. Pelo contrário, a disciplina passou por um processo muito longo de construção, que se deu através do acúmulo de contribuições de diversos pesquisadores, notadamente no século XVIII e XIX.
        Sendo assim, podemos dividir a história de formação da biogeografia em dois períodos muito distintos:
         1) o período pré-evolutivo, no qual se acreditava no fixismo das espécies, na constância e estabilidade da Terra, em um centro de origem e dispersão; e 2) o período evolutivo, que incorpora as idéias de mudanças tanto da biota (evolução) quanto da própria Terra às explicações biogeográficas, resultando no paradigma vicariante que serviu de base para a biogeografia histórica, que será melhor detalhada no decorrer do texto. 

O desenvolvimento do pensamento biogeográfico
            Desde muito cedo na história da humanidade o homem já tinha a curiosidade de saber por que as espécies estão onde estão. Diversos povos possuem explicações para a origem e distribuição tanto do homem quanto das demais espécies, a maioria delas pautadas em explicações religiosas. No entanto, as idéias iniciais trazem implícitos dois conceitos que perduraram durante muito tempo como única explicação plausível para os padrões observados: a idéia de centro de origem e o processo de dispersão. Acreditava-se que todos os organismos surgiram em uma só área – o centro de origem – e que posteriormente se dispersaram a partir dali, ocupando toda a superfície da Terra (Fig. 1). Uma das mais antigas teorias biogeográficas é encontrada no Livro do Gênesis. De acordo com ela, todos os organismos foram criados no Éden e a partir daí se dispersaram para as outras regiões do globo. O mesmo raciocínio se aplica à idéia da Arca de Noé (Fig. 2) e da Torre de Babel (Fig. 3): as espécies e povos, respectivamente, surgiram no centro de origem e então se dispersaram e se diversificam a partir dele.

 Fig. 1. Topografia do Paraíso terrestre, o centro de origem de todas as espécies (Athanasius Kircher, 1675).

Fig. 2. O ingresso dos animais na Arca de Noé (Athanasius Kircher, 1675)

Fig. 3. A Torre de Babel (Athanasius Kircher, 1679)

         Até então, a teoria biogeográfica fornecida pela Bíblia parecia explicar satisfatoriamente a ocupação da Terra por homens, animais e plantas após o dilúvio. No entanto, surgiram alguns problemas à medida que mais informações eram agregadas ao conhecimento humano, tais como a descoberta de novos continentes e de novas espécies. Nesse sentido, uma das principais questões a serem respondidas pelos primeiros biogeógrafos era: quantas e quais espécies Noé teria transportado em sua Arca? Uma das figuras mais importantes nesse cenário foi o padre jesuíta Athanasius Kircher (Fig. 4), que concluiu que Noé não levou consigo na Arca todos os animais, mas apenas algumas espécies. As demais espécies de animais e também as plantas surgiram por geração espontânea ou por hibridização entre espécies. Kircher não só calculou e estabeleceu o tempo de duração do dilúvio, como também estabeleceu as dimensões da arca, incluindo seus corredores, passagens e cômodos onde cada espécie teria sido alojada. Ele considerou a existência de três andares na embarcação e fez a planta de distribuição de todos os cômodos, tanto dos espaços dos onde cada animal foi alocado, quanto dos locais de armazenamento de água e alimento. 

Fig. 4. Athanasius Kircher.

            Mais tarde, com a “descoberta” da América pelos europeus, surgiu a necessidade de se remodelar as teorias da época para explicar a existência da fauna americana. Como explicar a ocorrência de animais totalmente diferentes daqueles encontrados na Europa? E como era possível encontrar animais a milhares de quilômetros de distância do centro de origem? As primeiras hipóteses para se explicar a dispersão dos animais do Velho para o Novo Mundo foram baseadas na existência de pontes intercontinentais: uma ligação física entre a Europa e as Américas que possibilitou o deslocamento de animais, mas que posteriormente desapareceu (Fig. 5). E para justificar a existência de animais completamente diferentes daqueles encontrados na Europa foi postulada a “cópula promíscua” entre as espécies, segundo a qual as espécies puras, criadas diretamente por Deus, se intercruzaram para gerar híbridos. Ou seja, as espécies puras, criadas na Europa, foram cruzando-se e degenerando-se, dando origem às espécies encontradas no Novo Mundo. Por exemplo, Kircher sugeriu que o tatu americano é resultante do cruzamento entre a tartaruga e o porco-espinho.

Fig. 5. Atlântida, uma ponte situada entre a África (à esquerda) e a América (à direita) (Athanasius Kircher, 1644).

                 No entanto, foi Carolus Linnaeus (1707 – 1778) (Fig. 6) quem formulou a primeira grande teoria biogeográfica dos tempos modernos, de acordo com a qual áreas distintas da Terra, com a mesma ecologia, deveriam possuir exatamente a mesma flora. Ou seja, plantas que habitam áreas semelhantes, mas em continentes diferentes, deveriam pertencer à mesma espécie. Linnaeus, no entanto, não levou em consideração os animais, desconsiderando o problema de sua dispersão.








Fig. 6. Carolus Linnaeus.

            Posteriormente, Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707 – 1788) (Fig. 7) examinou as espécies de mamíferos do Velho Mundo conhecidas na época e mostrou que a maioria delas não possuía correspondentes na América, isto é, eram espécies exclusivas do Velho Mundo. A partir de suas descobertas foi formulada a Lei de Buffon, segundo a qual diferentes regiões do globo, apesar de compartilharem as mesmas condições, são habitadas por diferentes espécies de animais e plantas. Os estudos de Buffon sugerem causas históricas para os padrões de distribuição, ou seja, ou o grupo de organismos surgiu naquela dada área ou veio de outro lugar. No primeiro caso, se for uma espécie, implica em dizer que a especiação ocorreu naquela área; no segundo caso, houve dispersão e conseqüente colonização.

Fig. 7. Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon.

A biogeografia histórica
          No entanto, foi apenas após a ampla aceitação da teoria da evolução que a biogeografia passou a ser concebida da forma como a entendemos atualmente. A teoria da evolução serviu de base para a construção de novos conceitos amplamente empregados hoje – tais como a vicariância – que serão discutidos a seguir.         
          Didaticamente, podemos subdividir a biogeografia em dois ramos principais:






            1) biogeografia ecológica, responsável por estudar os processos a curto prazo que atuam sobre o padrão de distribuição dos organismos em função de suas adaptações às condições atuais do meio e
            2) biogeografia histórica, relacionada com os processos históricos que atuam sobre o padrão de distribuição dos organismos.
            A biogeografia histórica nos mostra que processos históricos de alterações no habitat podem ser usados para explicar padrões de distribuição diferentes do esperado ao acaso. Ela apresenta diversos métodos que possibilitam a reconstrução da história e do relacionamento entre as áreas, através do estudo das espécies que as ocupam. Sua base está alicerçada na fusão das idéias de León Croizat (1894 - 1982) (Fig. 8) e de Alfred Wegener (1880 - 1930) (Fig. 9).
            Croizat foi um botânico italiano responsável por uma das mais importantes contribuições à biogeografia: o desenvolvimento da idéia de vicariância – a fragmentação de uma população ancestral por uma barreira geográfica, levando ao impedimento de fluxo gênico e posterior especiação. A proposição da vicariância para explicar os padrões de distribuição foi um grande avanço em relação às explicações dispersionistas em termos de capacidade de explanação e de teste. Isso porque os eventos de dispersão são eventos individuais, pontuais, uma vez que cada espécie tem sua própria capacidade e rota de dispersão. Por essa razão, explicações dispersionistas não são passíveis de teste, pois não ocorrem concomitantemente em dois organismos diferentes devido aos mesmos processos. Eventos de vicariância, ao contrário, são eventos que envolvem vários táxons ao mesmo tempo e por isso são passíveis de teste através da comparação com outros grupos que ocupam a mesma área. Além do conceito de vicariância, Croizat é o autor de uma das mais célebres idéias da biogeografia: “A Terra e a vida evoluem juntas”.  De acordo com ela, a biota e a área que abriga tal biota apresentam histórias correlacionadas. Desse modo, a história geológica da Terra pode fornecer subsídios para se compreender a história dos organismos, assim como a história dos organismos pode ajudar-nos a entender a história do nosso planeta.
            Alfred Wegener, por sua vez, foi um meteorologista e geólogo alemão responsável pela proposição da teoria da Deriva Continental, segundo a qual os continentes já estiveram unidos no passado, formando um supercontinente chamado Pangea. Com o passar do tempo a Pangea sofreu fragmentação e os blocos continentais resultantes foram afastando-se de modo que as suas formas e posições modificaram-se até atingirem a conformação atual. Wegener construiu sua teoria com base nas semelhanças dos contornos dos continentes, que sugerem um encaixe, e também na similaridade entre fósseis tanto de animais quanto de plantas encontrados em diferentes continentes. Ele não foi o primeiro a sugerir que os continentes já estiveram unidos, mas foi o primeiro a apresentar evidências extensas de vários campos de estudo que comprovaram sua teoria. Essas evidências, aliadas a um conhecimento mais profundo da geologia da Terra, hoje são reunidas na teoria da Tectônica de Placas. A crosta terrestre, segundo esta teoria, seria formada por diversas placas rígidas que se movem umas em relação às outras, sendo carreadas por lentas correntes de convecção existentes no interior do planeta. O advento da tectônica de placas fez com que os biogeógrafos mudassem o enfoque de suas explanações. A aceitação da mobilidade dos continentes para explicar as distribuições biogeográficas dos organismos fornece um meio de se testar as hipóteses de vicariância. 
           

Fig. 8. Leon Croizat.
Fig. 9. Alfred Wegener.

            Apesar de sua enorme complexidade de conceitos, a biogeografia não é unicamente importante no âmbito acadêmico, tampouco é restrita à agregação de informações puramente empíricas. Sob o ponto de vista prático, a biogeografia é uma ferramenta extremamente útil, por exemplo, para a conservação da biodiversidade. Os métodos de reconstrução da história biogeográfica têm sido muito valorizados no reconhecimento das áreas de endemismo, que são unidades complexas e relevantes sob o ponto de vista histórico e evolutivo, e que, portanto, devem ser preservadas. O panorama atual de escassez de recursos destinados à criação e manutenção de unidades de conservação, aliada à pressão no sentido de destruição de habitats, exige que as áreas a serem protegidas sejam cuidadosamente escolhidas, o que é possível utilizando-se os métodos da biogeografia histórica.
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Fonte das figuras:
Fig. 1: www.historycooperative.org/journals/ahr/110.5/images/smail_fig04b.gif
Fig. 2: www.kenjirookazaki.com/arch/beyond/05Athanasius-Kircher
Fig. 3: www.anfrix.com/2006/03/turris-babel-athanasius-kircher/Posts/anfrix_pic_02_2.jpg
Fig. 4: www.voynich.nu/img/gallery/kircher.jpg
Fig. 5: www.rose-croix.org/mediatheque/Video/images_atlantide/carte_atlantide_kircher.gif
Fig. 6: http://cr4.globalspec.com/PostImages/200705/Carolus_Linnaeus_BA6426C3-C281-147D-7FDB4FD76FC18741.jpg
Fig. 7: http://institucional.us.es/darwin09/buffon.jpg
Fig. 8: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/6d/Leon_Croizat-ru.jpg/200px-Leon_Croizat-ru.jpg
Fig. 9: www.iki.rssi.ru/mirrors/stern/earthmag/Figures/wegener.gif 






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Para ler:





Em português:
Amorim, D.S. 1997. Elementos básicos de Sistemática Filogenética. 2a. ed. Ribeirão Preto, Sociedade Brasileira de Entomologia. 276 p.

Carvalho, C.J.B. 2004. Ferramentas atuais da Biogeografia histórica para utilização em conservação, p. 92-103. In: Milano, M.S.; Takahashi, L.Y. & Nunes, M.L. (org.). Unidades de Conservação: atualidades e tendências. Curitiba, Fundação O Boticário de Proteção da Natureza. 208 p.

Papavero, N.; Teixeira, D.M. & Llorente-Bousquets, J. 1997. História da Biogeografia no período Pré-evolutivo. São Paulo, Plêiade/Fapesp. 258 p.

Em inglês:
Bremer, K. 1992. Ancestral areas: a cladistic reinterpretation of the center of origin concept. Systematic Biology 4: 436-445.

Brown, J.H. & Lomolino, M.V. 2006. Biogeografia, 2a.. ed., Sinauer Associates Pub.

Cox, C.B. & Moore, P.D. 1993. Biogeography. An ecological and evolutionary approach. 5ª ed.. Oxford, Blackwell Science Ltd. 326 p.

Cracraft, J. 1988. Vicariance biogeography: theory, methods, and applications. Systematic Zoology 37: 219-220.

Craw, R.C. 1984. Biogeography and biogeographical principles. New Zealand Entomologist 8:49-52.

Craw, R.C. 1984. Never a serious scientist: the life of Leon Croizat. Tuatara 27: 5-7.

Crisci, J.V.; Katinas, L. & Posadas, P. 2003. Historical Biogeography: an introduction. Cambridge, Harvard University Press. 250 p.

Humphries, C.J. 2000. Form, space and time; which comes first ? Journal of Biogeography 27: 11-15.

Morrone, J.J. 1993. Beyond binary oppositions. Cladistics 9: 437–438.

Morrone, J.J. 2004. Homología biogeográfica: las coordenadas espaciales de la vida. Cuadernos del Instituto de Biología 37, Instituto de Biología, UNAM, México D.F.

 Sobre o autor:

         Jéssica Paula Gillung, apaixonada por ciências naturais desde que se conhece por gente, decidiu já muito cedo na vida que a Biologia seria sua profissão. Concluiu sua graduação em 2008 na Universidade Federal do Paraná, onde descobriu o maravilhoso mundo dos insetos. Em 2009 ingressou no mestrado na Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação em Zoologia, atualmente no primeiro ano de curso. Amante da entomologia, seu objeto de estudo sempre foram os dípteros. Seu grupo de interesse é Acroceridae (Diptera), um pequeno grupo de moscas com biologia extremamente interessante, mas que carece de estudos aprofundados de Taxonomia e Sistemática. Por isso, seu projeto de pesquisa foca os aspectos taxonômicos do grupo, buscando compreender e organizar sua diversidade, em especial na região Neotropical.
Currículo Lattes

4 comentários:

  1. Roberto Shiniti Fujii09/05/2010, 13:24

    Um ótimo texto!

    Inclusive leva a refletir sobre atividades com os alunos que permitam a
    superação dos conhecimentos prévios e alguns obstáculos epistemológicos. O
    professor pode solicitar aos alunos a pensarem numa Arca de Noe para as
    espécies vivas, partindo do princípio de que todas as espécies do planeta
    foram salvas do Dilúvio. Apesar de muitas especulações e estimativas,
    supondo a existência de 2 milhões de espécies e supondo que "um casal de
    cada espécie" foi para a Arca, pode-se solicitar que eles tentem projetar a
    embarcação.

    Depois o professor pode perguntar sobre a diversidade genética e a
    existência das mutações, além de pensar em todos os recursos necessários e
    que devem ser embarcados para sustentar todos aqueles seres vivos. Além do
    fato de quanta madeira foi necessária para a construção da própria
    embarcação.

    Alguém teria ideias melhores? É porque estou pensando em algo do gênero para
    um material público e gostaria de obter sugestões.

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  2. Adorei este texto! Uma pena que o desenvolvimento do pensamento científico seja tão pouco explorado e discutido em salas de aula, inclusive nos cursos de ciências biológicas! Ainda bem que nos restam grupos isolados em botequins, certo? Brincadeiras à parte, parabéns!

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  3. adorei esse texto parabéns!

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