Por
Gerardo Furtado
Por que escrevi um
livro sobre biologia evolutiva? Ou melhor, por que eu quis escrever um livro
sobre biologia evolutiva? Essa é uma pergunta pertinente, e sua resposta, como
a resposta para as causas da maior parte dos comportamentos complexos, envolve
uma grande diversidade de fatores.
Fui
aluno de Segundo Grau (o então chamado Ensino Médio) na década de oitenta.
Naquela época o ensino da biologia era bem pior do que é hoje. Os livros eram
de uma qualidade sofrível, beirando o absurdo. Não estou me referindo à sua
qualidade gráfica (algo que melhorou bastante nos últimos quinze anos, mas que
infelizmente é única virtude de alguns dos livros atuais de biologia, cheios de
beleza e carentes de conteúdo), e sim à qualidade de seus textos: tratava-se de
uma visão bem ultrapassada de biologia, com conceitos mais adequados ao século
XVIII que ao século XX: “a parede celular das células vegetais é uma estrutura
morta”, “as plantas fazem fotossíntese para liberar O2 na
atmosfera”, “os fungos são os vegetais mais simples”, e assim por diante. Além
disso, abundavam informações erradas, que mesmo na época poderiam ser
facilmente corrigidas: “a hemoglobina transporta CO2”, “quando uma
ligação no ATP é quebrada há liberação de energia”, “a notocorda transforma-se
na coluna vertebral”... São tantos os exemplos que uma lista, ainda que
resumida, não caberia aqui. Havia alguns livros bons naquela época, mas não
eram brasileiros. Lembro-me de que estudávamos pelo livro de biologia geral da
Helena Curtis, a famigerada edição da Guanabara de 77, e era uma lufada de ar
fresco em nossos pulmões. Também consegui, quando garoto no Segundo Grau,
acesso ao Biologia Geral do Claude Villee, aos livros da BSCS (Biological
Sciences Curriculum Studies)... até o Baker & Allen era melhor que os
livros didáticos que tínhamos na época.
Em
seguida, havia os professores. Sinceramente, não sei como me interessei por
biologia, tendo em vista os professores que tive. Se a abordagem dos livros era
mais adequada ao século XVIII, não sei se os professores chegavam sequer àquele
parâmetro. No primeiro ano estudávamos bioquímica, citologia, histologia. A
falta de intimidade com a química e com a matemática, e com as ciências de
forma geral, era notória; assim, a biologia era apenas uma série de conceitos a
se decorar (e decorar é uma palavra tão bonita, significa “de coração”, que nem
merecia figurar aqui). História, filosofia, matemática, química ou física,
essas eram matérias onde se usava o raciocínio. Biologia, não. Veio então o
segundo ano, com zoologia e botânica. E, junto, veio boa parte da Idade Média:
quase todo o curso era baseado na scala
naturae. Aprendi que os primeiros animais a terem surgido foram as
esponjas, que deram origem aos cnidários, que deram origem aos platelmintos. Os
platelmintos, sendo assim, foram os primeiros animais a ter simetria bilateral.
Viemos dos répteis, que vieram dos anfíbios, que vieram dos peixes. Mais parece
a descrição da genealogia de Abraão no εὐαγγέλιον κατὰ Ματθαῖον. Nas plantas o mesmo aconteceu: as briófitas
geraram as pteridófitas, que geraram as gimnospermas, que geraram as
angiospermas. Tudo isso era um prenúncio do que nos aguardava um pouco mais à
frente.
E
o que nos aguardava era a biologia evolutiva. O resultado, como muitos
vivenciaram, não poderia ser mais desastroso, pois a biologia evolutiva é uma
ciência muito complexa, além de demasiadamente recente, que requer uma série de
habilidades específicas. Deixá-la na mão de professores que ainda ensinam a scala naturae, e que por sinal não têm
nem ideia do que seja uma scala naturae,
é temerário. Mas é o que ocorre. O resultado é que a biologia evolutiva no
Segundo Grau, e alguns anos depois no recém-batizado Ensino Médio, é uma série
de conceitos tão incorretos e absurdos que não espanta o elevado grau de
analfabetismo científico em nossa sociedade, no que tange especificamente à
biologia evolutiva.
Em primeiro lugar, os
professores pintavam uma batalha histórica de Lamarck versus Darwin, como se o
embate das ideias fosse o embate dos homens. Aprendemos que Lamarck criou os
conceitos de transmissão de caracteres adquiridos e do uso das partes, quando
na verdade esses eram conceitos comuns à sua época. Entre outras pessoas que
usaram esses conceitos está o próprio Darwin, que na “origem das espécies” fala
de transmissão de caracteres adquiridos em pelo menos 13 diferentes ocasiões.
Assim, o que concluímos é que praticamente nenhum professor de biologia do
Segundo Grau leu “a origem das espécies”.
Aprendemos
que evolução é progresso, e que a redução da complexidade é uma involução. Aprendemos que seleção
natural e evolução são sinônimos, e que a evolução ocorre sempre por seleção
natural. Aprendemos que o mais apto sobrevive, e que todas as características
de um organismo foram moldadas pela seleção natural. Aprendemos que o longo
pescoço das girafas tem algo a ver com a sua alimentação. Aprendemos que se o
meio tiver alguma influência, qualquer que seja, no processo evolutivo,
tratar-se-á de um “lamarckismo”. Aprendemos que homólogas são estruturas com
mesma origem e diferente função, e que análogas são estruturas com mesma função
e diferente origem. Aprendemos que as asas de um morcego e as asas de um passarinho
são estruturas homólogas.
Todos
os conceitos apresentados no parágrafo anterior, precedido por esse irritante
“aprendemos”, são equivocados. Todos eles. Ainda assim, são repetidos à exaustão.
O que me parece, e eu posso estar redondamente enganado, é que para dar aulas
sobre evolução os professores não se preocupavam em ter nenhum estudo
específico. Egressos da pedagogia, ou da licenciatura em ciências, ou da
medicina, farmácia, fisioterapia, ou mesmo (uns poucos) da biologia, eles provavelmente
achavam que não seria necessária uma formação específica em biologia evolutiva.
Além disso, e aqui vem o mais grave, me parece — com base na minha experiência,
id est, nos professores que tive no segundo grau — que muitos deles aprendiam
evolução estudando o próprio livro-texto
adotado pelo colégio. Essa tendência, devo confessar, eu vejo ainda hoje entre
meus colegas professores. Quando pergunto “qual o seu livro preferido” em
citologia, costumo ouvir Alberts ou Lodish. Em fisiologia, costumo ouvir
Guyton, ou Ganong, ou Levy. Em botânica, quase sempre é o Raven. Em zoologia
temos o Barnes, ou o Hickman... mas quando o tema é evolução, costumo ouvir um
grilo roçando suas asas. Não há Futuyma, ou Ridley, ou Freeman. Mais uma vez,
temos a sensação de que não é necessário estudar biologia evolutiva, de que se
trata de um assunto que o professor pode deduzir a partir de seus conhecimentos
em outras áreas das ciências biológicas.
Perto
do fim do segundo grau, ainda na multicolorida década de oitenta, comecei a ter
acesso a livros que tratavam direta ou indiretamente de evolução. Por sorte,
tive um professor que se interessava genuinamente por evolução, e que me
indicou “o gene egoísta”. Hoje em dia discordo bastante de muitas das ideias de
Dawkins, mas nunca negarei a importância que ele teve para mim, com meus 16 ou
17 anos, não lembro ao certo, para que eu percebesse que havia de fato uma
ciência da evolução, uma construção de conceitos lógicos, racionais, com
hipóteses e testes matemáticos, com análises estatísticas sérias. Uma série de
indagações começou a ser respondida, e uma série de conceitos passou a fazer
sentido. Já na faculdade passei a ler Maynard-Smith, que me interessou muito.
Dele fui ao Gould, cuja obra é uma fonte praticamente inesgotável de leituras
agradáveis. Passei então aos livros-texto propriamente ditos, como o Futuyma,
meu preferido, ou o Stearns. Tive o imenso prazer de ler pela primeira vez a
“origem das espécies” em uma primeira edição (na verdade um fac-símile da
primeira edição, publicado pela Harvard Press), que é bem melhor que a sexta
edição, a única — até onde eu saiba — com tradução em português.
Enfim,
vinte e um anos se passaram desde que eu saí do segundo grau. Hoje muita coisa
está diferente. A qualidade dos livros escolares em biologia, devo confessar,
está bem melhor (incluindo aqui a qualidade gráfica, que é importante para
manter a atenção de um aluno adolescente), apesar de muitos erros conceituais
injustificáveis se manterem edição após edição. Os professores, em sua maioria,
têm uma formação mais adequada à disciplina que lecionam, e parecem ser mais
interessados em atualizar suas leituras e seus estudos. Apesar disso, a biologia
evolutiva ainda sofre de muitos dos problemas que sofria quando eu era aluno, e
em certas escolas parece ainda ser lecionada da mesma forma que então.
Eu
vivi isso na pele. Tentar mudar conceitos equivocados, mas consagrados pelo
uso, pode ser uma atividade bem frustrante. Tive meus primeiros estudos de
sistemática filogenética no começo da década de noventa, e devo dizer,
exercendo esse desagradável esporte que é falar bem de si mesmo, muito antes
dos meus colegas professores (hoje em dia, ainda bem, todo mundo tem pelo menos
uma noção do que é monofilético, merofilético, apomorfia, nó, grupo-irmão etc).
Assim, tentei nadar contra a maré ao tentar explicar a maioria dos conceitos da
biologia evolutiva. Tomemos o exemplo da homologia e da analogia. Foram os
conceitos com os quais mais tive trabalho nesses últimos quinze anos, por uma
razão bastante simples: as definições que eu trazia eram bem diferentes das que
estavam nos livros-texto. Uma homologia é uma semelhança por descendência,
apenas isso. Tentei explicar que estruturas anatômicas poderiam ser homologias,
mas que estruturas comportamentais também poderiam ser. Tentei explicar que o
desenvolvimento embrionário não define homologias, pois o flagelo ou o
ribossomo de duas bactérias podem ser estruturas homólogas, mesmo sem
desenvolvimento embrionário. Tentei explicar que estruturas homólogas podem ter
funções iguais ou diferentes, e que estruturas análogas também podem ter
funções iguais ou diferentes. Por fim, tentei explicar que as asas de uma andorinha
e as asas de um morcego são estruturas análogas, pois o ancestral comum dessas
espécies não possuía asas (o que é homólogo aqui são as patas anteriores da
andorinha e do morcego. Em ambos, as patas anteriores são asas; contudo, as asas não são uma homologia).
Em
praticamente todos os conceitos da biologia evolutiva tive dificuldades e
problemas. Explicar para os alunos que o homem não veio do macaco, nem que o
macaco veio do homem (e que um chimpanzé não é um macaco) é uma tarefa
hercúlea. Melhor ainda, é uma tarefa sisífica. A scala naturae está bem mais entranhada no ensino médio do que
poderíamos supor. Aula após aula, tentei tomar cuidado em dizer que os
platelmintos não são nem nunca foram os primeiros animais a possuírem simetria
bilateral, ou mesoderme, ou cefalização. Esses foram os ancestrais dos platelmintos, e que por sinais são nossos ancestrais
também. Tomei o cuidado de não falar que as briófitas originaram as
pteridófitas, o que é mais inadequado ainda quando se sabe que tanto briófitas
como pteridófitas são grupos parafiléticos! Tomei o cuidado de nunca falar que
Darwin desprezava o uso e desuso das partes e sua transmissão à descendência,
uma vez que ele fala sobre isso mais de dez vezes na “origem das espécies”!
Tentei tomar cuidado para nunca associar evolução a progresso, para nunca usar
o termo involução (que sequer existe em biologia evolutiva), para nunca definir
fitness como algo subjetivo e teleológico. Tentei sempre deixar bem claro que a
evolução pode não ocorrer, e caso ocorra, pode ocorrer sem que haja seleção.
Tudo
isso, contudo, ia de encontro a boa parte dos textos dos livros do Ensino
Médio; pior ainda, ia de encontro a boa parte dos conceitos popularmente
disseminados sobre evolução e biologia evolutiva. Aqui chegamos, finalmente, ao
momento em que eu resolvi escrever um pequeno livro sobre biologia evolutiva. O
que motivou foi esclarecer conceitos, e conceitos bem básicos. O meu objetivo
foi tentar construir um fundamento, simples porém firme, para que o aluno possa
partir para outras leituras, mais complexas e mais aprofundadas. Se nossos
livros-texto tivessem conceitos mais adequados ao século XX e menos adequados
ao século XVIII, eu dificilmente teria escrito meu livro. Se a scala naturae fosse apenas uma
curiosidade nas aulas de história, e não a base conceitual de quase todas as
aulas de biologia no segundo grau e mesmo nas faculdades, eu dificilmente teria
escrito meu livro.
Demorei
uns dois meses para escrevê-lo. Na verdade, demorei sete noites, uma para cada
conceito, mas espaçadas num intervalo de dois meses. Escrever de forma alguma
foi o mais difícil: o mais difícil, como todos aqueles que escrevem sabem, é
divulgar sua obra.
Para
início de meus problemas, há a questão de minha “autoridade” no assunto: nunca
fiz nenhuma cadeira sobre biologia evolutiva! Por razões que vão além da minha
compreensão, os coordenadores da universidade federal onde estudei são contra a
criação de uma cadeira de biologia evolutiva, reivindicação constante dos
alunos há pelo menos vinte anos. Por isso, mandei os originais para meu grande
amigo Felipe Pessoa, doutor em entomologia, que gentilmente sugeriu valiosas
modificações e aceitou ser o coautor do livro, dando a ele a autoridade de que
carecia.
Em
seguida, veio a publicação em si. Fiz diversas propostas, enviei diversas
cópias, e colecionei umas duas dezenas de “nãos”. Resolvi eu mesmo fazer a
edição e a publicação do livro, pagando a tiragem de meu próprio bolso, algo
que prometi a mim mesmo nunca mais fazer: meu próximo livro será em arquivo
digital, e gratuito. Ganhar dinheiro com livros é algo que nós não podemos,
ingenuamente, esperar que aconteça; porém, perder
dinheiro com livros é algo que não posso me dar ao luxo de fazer novamente. Sem
editora ou distribuidora, eu mesmo tive que fazer esse trabalho, e
previsivelmente as vendas foram poucas (algumas ordens de grandeza a menos do
que os gastos).
Apesar disso, continuo
eventualmente enviando propostas para uma ou outra editora, na esperança de que
um dia alguma se interesse. Não sei se é uma impressão equivocada, mas me
parece, agora que eu passei a pesquisar mais atentamente os livros e o mercado
editorial em português (visto que todos os livros de biologia evolutiva que
tenho, com a exceção do livro do prof. Dalton Amorim, são de autores
estrangeiros), que a publicação de livros de divulgação científica sobre
biologia evolutiva tem aumentado nesses últimos anos, e muito disso por causa
dos 200 anos do nascimento de Darwin. Devo confessar uma profunda inveja desses
autores, por terem conseguido publicar seus livros. Porém, invejas à parte,
fico feliz por existirem tais autores, que tentam divulgar uma biologia
evolutiva mais séria e coerente para o público comum, contribuindo para esse
processo tão importante, denominado alfabetização científica.
Para
saber mais:
Lições sobre 7 conceitos fundamentais da
biologia evolutiva, 2009, Gerardo Furtado.
Sobre o
autor:
Gerardo Furtado é um apaixonado pela biologia em (quase) todas as suas vertentes.
Helenista incipiente, bibliófilo confesso, pretende, se um dia conseguir se
tornar biólogo, trilhar o fascinante caminho da etologia. Tem um blogue de
Ciências, o “Biologia Evolutiva” (visitem!) onde escreve sobre diversos
assuntos e fala um pouquinho mais sobre ele e sobre o seu livro...
Fonte da figura: Charles Darwin's evolutionary tree (http://www2.thu.edu.tw/~sysnevo/index.php?page=home&lang=en)
Fonte da figura: Charles Darwin's evolutionary tree (http://www2.thu.edu.tw/~sysnevo/index.php?page=home&lang=en)
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