Por Carlos
Alexandre Henrique Fernandes
O ácido ribonucléico
(RNA) é tratado classicamente como a molécula que comanda a síntese protéica,
através dos RNAs mensageiros, (mRNAs), RNAs transportadores (tRNAs) e dos
ribossomos (rRNAs). Entretanto, a partir do início do século, um grande número
de estudos descobriu uma enorme diversidade de tipos de RNAs que não estava
envolvida com a síntese proteíca: são moléculas de RNA relacionadas a complexos
mecanismos de expressão gênica, seja nas formas de RNAs de interferência
(microRNAs, small interference RNAs, entre outros) (Figura 1) ou na forma de riboswitches, estruturas enoveladas de
RNA que interagem com metabólitos específicos para o controle da expressão
gênica (Figura 1). Dessa maneira, o RNA deixou de ser um mero “coadjuvante” dos
processos celulares e se tornou um dos principais atores dos intricados
mecanismos de transcrição (formação do molde de mRNA a partir de DNA) e
tradução (síntese de proteína a partir do mRNA). Esses grandes avanços em
relação ao entendimento do funcionamento da molécula de RNA acabaram por dar
mais subsídios para a discussão da origem da vida na Terra, tendo a molécula de
RNA como o centro dessa discussão.
A origem da vida é uma
das grandes questões científicas que vem sendo abordada pelos mais ilustres
pensadores há milênios. Atualmente, a hipótese do RNA world (mundo de RNA) é considerada pela maioria dos cientistas a
mais bem conhecida, e talvez a única em que se tenha claramente ultrapassado o
domínio da especulação. De acordo com esta teoria, antes das células modernas,
o RNA era o material genético e, ao mesmo tempo, era ele que catalisava as
reações químicas nas células primitivas. Apenas posteriormente é que o DNA se tornou
o material genético e as proteínas os maiores componentes estruturais e
catalisadores das células. Essa hipótese é reforçada por três evidências: i)
o pareamento complementar dos
nucleotídeos, que promove a cópia exata da sequência, pois devido a essa
complementaridade das bases, uma sequência serve de modelo para outra; ii) a decoberta
das ribozimas, moléculas de RNA que possuem atividade catalítica e participam
de importantes reações nas células modernas e iii) os viróides e virusóides,
agentes infecciosos de plantas que consistem em um RNA pequeno (200
nucleotídeos), circular, fita simples, não codificante que, através da
maquinaria de transcrição da célula hospedeira, é capaz de se auto-replicar. Por
isso, as ribozimas, os viróides e os virusóides são considerados “fósseis
moleculares” do RNA world.
Entretanto, sob o ponto de vista químico e estrutural, é
difícil imaginar como o RNA tenha se formado de uma maneira não-enzimática, já
que as polimerases realizam uma hidrólise na formação dos ácidos nucléicos,
atividade esta que requer uma molécula com atividade enzimática. Dessa forma,
aponta-se que antes do RNA, as primeiras moléculas que possuíam atividade
enzimática e capacidade de guardar informações eram polímeros, sem registros
fósseis ou remanescentes nas células modernas, que se assemelham ao RNA, mas
são quimicamente mais simples como, por exemplo, o PNA (Peptide nucleic acid) e o p-RNA (Pyranosyl-RNA) (Figura 2). A cadeia de ribose do RNA é substituída
no PNA por uma cadeia peptídica, de maneira similar às proteínas. Essa cadeia
peptídica, diferentemente da ribose é um polímero estável e se forma
espontaneamente em altas quantidades em condições pré-bióticas. Entretanto, o
PNA é mais rígido, e por isso pode trazer certas limitações à catálise, já que
essa atividade provoca grandes modificações na estrutura da molécula que a
realiza.
Figura 2: Estrutura do PNA (a) e do RNA (b). Adaptado de Nelson et al. (2002). |
A
transição de um “pré-RNA world” para
o RNA world pode ter se dado através
da síntese de um RNA utilizando-se um desses polímeros tanto como fita-molde,
como catalisador. Experimentos em laboratório mostraram que o PNA pode atuar
como uma fita-molde para a síntese de RNA porque as geometrias das bases das
duas moléculas são bastante semelhantes. A partir da primeira molécula de RNA,
outras foram sendo geradas e se diversificaram gradualmente, até assumir carregar
as funções que anteriormente eram dos polímeros pré-RNA e formar o RNA world.
O
processo de síntese de proteínas nas células modernas é um sistema bastante
intrincado e complexo e por isso, torna-se difícil imaginar como ele se
desenvolveu no RNA world. Por
enquanto, apenas especulações sobre a origem da síntese proteica e do código
genético podem ser feitas, mas alguns experimentos vêm sendo realizados e
alguns cenários já podem ser desenhados. Experimentos de seleção de RNA in vitro produziram moléculas de RNA que
conseguem se ligar fortemente a aminoácidos. A seqüência de nucleotídeos destes
RNAs contém uma freqüência extremamente alta de códons do aminoácido que ele
reconhece. Por exemplo, moléculas de RNA que se ligam seletivamente a arginina
possuem uma alta freqüência de códons que codificam arginina. Essa correlação não
é perfeita para todos os aminoácidos e sua interpretação pode ser duvidosa, mas
pode indicar que um código genético limitado pode ter surgido de uma associação
direta entre aminoácidos e seqüências específicas de RNA, com o próprio RNA
servindo de molde para a polimerização de alguns aminoácidos. A eficiência
desta síntese protéica primitiva deve ter aumentando consideravelmente após o
surgimento ligação peptídica. Os ribossomos, por sua vez, podem ter surgido a
partir de uma ribozima com capacidade de acrescentar aminoácidos e fazer
ligações peptídicas, que com o passar do tempo, ficou maior e adquiriu a
habilidade de posicionar corretamente os tRNAs nos moldes de RNA. Uma vez
desenvolvida a síntese protéica, as proteínas, graças a sua maior versatilidade,
puderam “conquistar” a maior parte das tarefas catalíticas e estruturais.
Quanto
ao DNA, a sua origem e a de seus mecanismos de replicação permanecem obscuras,
mas elas devem ser posteriores ao surgimento das proteínas, já que um grande
número de proteínas necessárias para a sua síntese e a formação da
desoxirribose é um processo bastante complexo. A desoxirribose, comparada com a
ribose, forma cadeias mais estáveis, possibilitando que o DNA possa se alongar
sem perigos de rompimento, e garantindo,
assim, a função de depósito seguro para a informação genética. Dessa maneira,
foi possível o alongamento do tamanho dos genomas e o surgimento de uma grande
diversidade de formas de vida.
Sobre o Autor... Leia aqui!
Bibliografia
Alberts, A.; Johnson, A.;
Lewis, J.; Raff, M.; Roberts, K.; Walter, P. Molecular Biology of the Cell. New York: Garland Sciences, 2002.
1463p.
Bartel, D.P.; Unrau, P.J.
Constructing an RNA world. Trends in
Cell Biology, v.9, M9-M13, 1999.
Daros, J.A.; Elena, S.F.;
Flores, R. Viroids: an Ariadne's thread into the RNA
labyrinth. EMBO Reports, v.7,
p.593-598, 2006.
Knight, R.D.; Landweber, L.F.
The early evolution of the genetic code. Cell,
v.101, p.569-572, 2000.
Mandal, M.; Breaker, R.R. Gene
regulation by riboswitches. Nature
Reviews Molecular Cell Biology, v.5, p.451-463, 2004.
Nelson, K.E.; Levy, M.;
Miller, S.L. Peptide nucleic acids rather than RNA may have been the first
genetic molecule. Proceedings of
National Academy of Science, v. 97, p. 3868-3871, 2000.
Reinhhar, B.J.; Weinstein,
E.G.; Rhoades, M.W.; Bartel, B.; Bartell, D.P. MicroRNAs in plants. Genes & Development, v. 16, p.
1616-1626, 2002.
Winkler, W.C.; Breaker, R.R.
Regulation of bacterial gene expression by riboswitches. Annual Review of Microbiology, v.59, p. 487-517, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário