quinta-feira, 14 de julho de 2011

As raízes da vida no planeta Terra: o maravilhoso mundo do RNA


Por Carlos Alexandre Henrique Fernandes

O ácido ribonucléico (RNA) é tratado classicamente como a molécula que comanda a síntese protéica, através dos RNAs mensageiros, (mRNAs), RNAs transportadores (tRNAs) e dos ribossomos (rRNAs). Entretanto, a partir do início do século, um grande número de estudos descobriu uma enorme diversidade de tipos de RNAs que não estava envolvida com a síntese proteíca: são moléculas de RNA relacionadas a complexos mecanismos de expressão gênica, seja nas formas de RNAs de interferência (microRNAs, small interference RNAs, entre outros) (Figura 1) ou na forma de riboswitches, estruturas enoveladas de RNA que interagem com metabólitos específicos para o controle da expressão gênica (Figura 1). Dessa maneira, o RNA deixou de ser um mero “coadjuvante” dos processos celulares e se tornou um dos principais atores dos intricados mecanismos de transcrição (formação do molde de mRNA a partir de DNA) e tradução (síntese de proteína a partir do mRNA). Esses grandes avanços em relação ao entendimento do funcionamento da molécula de RNA acabaram por dar mais subsídios para a discussão da origem da vida na Terra, tendo a molécula de RNA como o centro dessa discussão.


Figura 1: Diversidade de (a) estrutruturas secundárias de precursores de microRNAs. Esses precursores são transcritos a partir do DNA e uma pequena parte é clivada, dando origem ao microRNA maduro (em vermelho) que atuará na regulação da expressão gênica;  (b) riboswitches. Adaptado de Reinhart et al. (2002) e  Mandal et al. (2004).

A origem da vida é uma das grandes questões científicas que vem sendo abordada pelos mais ilustres pensadores há milênios. Atualmente, a hipótese do RNA world (mundo de RNA) é considerada pela maioria dos cientistas a mais bem conhecida, e talvez a única em que se tenha claramente ultrapassado o domínio da especulação. De acordo com esta teoria, antes das células modernas, o RNA era o material genético e, ao mesmo tempo, era ele que catalisava as reações químicas nas células primitivas. Apenas posteriormente é que o DNA se tornou o material genético e as proteínas os maiores componentes estruturais e catalisadores das células. Essa hipótese é reforçada por três evidências: i) o  pareamento complementar dos nucleotídeos, que promove a cópia exata da sequência, pois devido a essa complementaridade das bases, uma sequência serve de modelo para outra; ii) a decoberta das ribozimas, moléculas de RNA que possuem atividade catalítica e participam de importantes reações nas células modernas e iii) os viróides e virusóides, agentes infecciosos de plantas que consistem em um RNA pequeno (200 nucleotídeos), circular, fita simples, não codificante que, através da maquinaria de transcrição da célula hospedeira, é capaz de se auto-replicar. Por isso, as ribozimas, os viróides e os virusóides são considerados “fósseis moleculares” do RNA world.
            Entretanto, sob o ponto de vista químico e estrutural, é difícil imaginar como o RNA tenha se formado de uma maneira não-enzimática, já que as polimerases realizam uma hidrólise na formação dos ácidos nucléicos, atividade esta que requer uma molécula com atividade enzimática. Dessa forma, aponta-se que antes do RNA, as primeiras moléculas que possuíam atividade enzimática e capacidade de guardar informações eram polímeros, sem registros fósseis ou remanescentes nas células modernas, que se assemelham ao RNA, mas são quimicamente mais simples como, por exemplo, o PNA (Peptide nucleic acid) e o p-RNA (Pyranosyl-RNA) (Figura 2). A cadeia de ribose do RNA é substituída no PNA por uma cadeia peptídica, de maneira similar às proteínas. Essa cadeia peptídica, diferentemente da ribose é um polímero estável e se forma espontaneamente em altas quantidades em condições pré-bióticas. Entretanto, o PNA é mais rígido, e por isso pode trazer certas limitações à catálise, já que essa atividade provoca grandes modificações na estrutura da molécula que a realiza.  
Figura 2: Estrutura do PNA (a) e do RNA (b). Adaptado de Nelson et al(2002).


            A transição de um “pré-RNA world” para o RNA world pode ter se dado através da síntese de um RNA utilizando-se um desses polímeros tanto como fita-molde, como catalisador. Experimentos em laboratório mostraram que o PNA pode atuar como uma fita-molde para a síntese de RNA porque as geometrias das bases das duas moléculas são bastante semelhantes. A partir da primeira molécula de RNA, outras foram sendo geradas e se diversificaram gradualmente, até assumir carregar as funções que anteriormente eram dos polímeros pré-RNA e formar o RNA world.
            O processo de síntese de proteínas nas células modernas é um sistema bastante intrincado e complexo e por isso, torna-se difícil imaginar como ele se desenvolveu no RNA world. Por enquanto, apenas especulações sobre a origem da síntese proteica e do código genético podem ser feitas, mas alguns experimentos vêm sendo realizados e alguns cenários já podem ser desenhados. Experimentos de seleção de RNA in vitro produziram moléculas de RNA que conseguem se ligar fortemente a aminoácidos. A seqüência de nucleotídeos destes RNAs contém uma freqüência extremamente alta de códons do aminoácido que ele reconhece. Por exemplo, moléculas de RNA que se ligam seletivamente a arginina possuem uma alta freqüência de códons que codificam arginina. Essa correlação não é perfeita para todos os aminoácidos e sua interpretação pode ser duvidosa, mas pode indicar que um código genético limitado pode ter surgido de uma associação direta entre aminoácidos e seqüências específicas de RNA, com o próprio RNA servindo de molde para a polimerização de alguns aminoácidos. A eficiência desta síntese protéica primitiva deve ter aumentando consideravelmente após o surgimento ligação peptídica. Os ribossomos, por sua vez, podem ter surgido a partir de uma ribozima com capacidade de acrescentar aminoácidos e fazer ligações peptídicas, que com o passar do tempo, ficou maior e adquiriu a habilidade de posicionar corretamente os tRNAs nos moldes de RNA. Uma vez desenvolvida a síntese protéica, as proteínas, graças a sua maior versatilidade, puderam “conquistar” a maior parte das tarefas catalíticas e estruturais.
            Quanto ao DNA, a sua origem e a de seus mecanismos de replicação permanecem obscuras, mas elas devem ser posteriores ao surgimento das proteínas, já que um grande número de proteínas necessárias para a sua síntese e a formação da desoxirribose é um processo bastante complexo. A desoxirribose, comparada com a ribose, forma cadeias mais estáveis, possibilitando que o DNA possa se alongar sem perigos de rompimento, e   garantindo, assim, a função de depósito seguro para a informação genética. Dessa maneira, foi possível o alongamento do tamanho dos genomas e o surgimento de uma grande diversidade de formas de vida.


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Bibliografia
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