Considerações acerca da divulgação científica
por Sibila
Carvalho
Há sobre a divulgação
científica uma expectativa tradicional de que ela deva desempenhar a mera
função de traduzir o discurso técnico e especializado da ciência em outro, de
fácil compreensão para o público. No entanto, tem-se reconhecido na difusão do
conhecimento científico o poder de se estabelecer uma cultura capaz de
influenciar não apenas o exercício da cidadania e a tomada de decisões na
sociedade, mas o próprio processo de produção do conhecimento. Nessa
perspectiva, o divulgador da ciência não deve apenas se limitar à reprodução do
discurso científico na mídia, mas abordá-lo de forma contextualizada, a incitar
a reflexão e o reconhecimento da ciência como um fenômeno cultural.
Ab ovo1
Está comprovado! Uma dieta
rica em ovos pode elevar drasticamente o colesterol e potencializar os riscos
de cardiopatias. Mas não se desespere: ricos em proteínas, vitaminas B e ferro,
os ovos são grandes aliados de sua saúde e – alegre-se – podem ajudar na perda
de peso!
Não é raro o leitor se deparar
com manchetes em jornais e revistas, especializados ou não, como a exemplificada
acima. O ovo talvez lidere o ranking
de dados produzidos pela ciência que ora são defendidos por pesquisadores e
profissionais da saúde, ora encarados como grandes vilões por seus pares. Resultados
científicos levados ao público de forma tão categórica e apresentados como a
única e possível forma de interpretação da realidade, acabam gerando ao redor
da ciência uma atmosfera de confusão e ceticismo.
Diante do crescente número de
inovações científicas e tecnológicas dos últimos vinte anos, pode-se pensar que
esse problema encontra suas origens apenas na prática muitas vezes
sensacionalista, tendenciosa e de visão panorâmica da comunicação. No entanto, muitas
das falhas características da divulgação científica advêm do imaginário criado
sobre a ciência à época de sua institucionalização, no século XIX.
Foi somente a partir da
segunda metade do século XIX, com a revolução técnico-científica, a qual
perdura até os dias de hoje, que a ciência foi integrada ao processo
capitalista, fornecendo às técnicas industriais seu conhecimento acumulado e
por ele sendo financiada. Antes desse período, não existiam bases sólidas,
institucionais ou sociais, para a ciência e seus praticantes. A ciência era ainda
tida como uma atividade para amadores; e tanto as universidades quanto as
indústrias e os governos não destinavam considerável atenção às profissões
científicas.
Buscando romper com a característica
vida medieval, a sociedade industrial que nasce nos finais do século XVIII,
após a primeira Revolução Industrial, e se expande com a revolução
técnico-científica, calcou-se nos ideais iluministas de sua época para
estabelecer os alicerces da produção do conhecimento científico e tecnológico.
Para quebrar os elos com o conhecimento extremamente ligado à metafísica e à
religião da Idade Média, filósofos e cientistas se apegam ao empirismo e ao
positivismo2 para afirmar a ciência como única forma de conhecimento
verdadeiro.
Nesse cenário, a ciência se
legitima na sociedade ocidental como única detentora do método capaz de atingir
a verdade sobre o universo, criando no imaginário social um valor irrefutável
para a expressão “cientificamente comprovado”. Os cientistas, assim, despontam
no início do século XX como os detentores do saber. A ciência renasce da que
passou a ser denominada Idade das Trevas como a criadora de um conhecimento
altamente confiável e reprodutível a partir do rigor metodológico. E, para
garantir o sucesso de seus experimentos e suas interpretações, ser cientista
exigiria, seguindo tais ideais iluministas, manter-se alheio ao contexto social
e aos interesses políticos e econômicos, e, por que não, ser dotado de certa
genialidade para a árdua missão da produção do conhecimento científico.
Em consequência, a comunicação
dedicada à ciência acabou, em muitas vezes, e mantém-se inerte até os dias de
hoje, limitando-se a reproduzir o discurso científico de maneira indiscutível,
funcionando apenas como seu transportador ao público, rendendo-se aos fascínios
de suas invenções e caindo nas armadilhas de suas parcialidades.
Divulgação jornalisticamente comprovada
Quando se fala nas
deficiências da divulgação científica no Brasil, há um senso comum que aponta
como seu grande responsável o despreparo dos profissionais da comunicação para
tratar de ciência, sua falta de conhecimento dos conceitos científicos e do
baixo rigor de seu discurso, que se vale, muitas vezes, de metáforas errôneas e
generalizações inapropriadas.
Não há que se duvidar de que
os investimentos na formação de profissionais qualificados para a atividade de
difusão do conhecimento científico devam ser o ponto de princípio para se estabelecer
uma sólida base de informação sobre a ciência entre os cidadãos brasileiros.
Entretanto, podem-se também
identificar nas falhas da comunicação entre a comunidade científica e a
sociedade resquícios da visão positivista do século XIX, que atribuiu ao
processo científico um distanciamento dos demais processos culturais.
A jornalista Mônica Teixeira,
em Pressupostos do jornalismo de ciência
no Brasil3, analisa a problemática do jornalismo científico – e
que pode se estender aos demais estilos e mídias da divulgação da ciência –
lançando o foco de atenção que se debruça demasiadamente sobre o “científico”
para o “jornalismo”.
Teixeira aponta como uma das
maiores faltas do jornalismo científico o fato de que jornalistas, por
considerarem a ciência uma suprema detentora do saber e da verdade, esquece-se
do principal pilar da prática jornalística: a busca pelo contraditório.
“Não te fiarás a uma só fonte
para escrever tuas matérias”, frisa a jornalista ao abordar o que chama de
primeiro mandamento do jornalismo. O repórter de ciência, como o repórter que
cobre qualquer outro tema, antes de elaborar seu texto deve ouvir e questionar diferentes
fontes, com distintas versões, para então construir uma versão própria para seu
texto, cuja fonte final torna-se, assim, o próprio repórter.
O que se vê, no entanto, é que
muitas matérias que abordam ciência costumam negligenciar esta “cláusula pétrea
do bom jornalismo”, deixando-se seduzir pelos argumentos de uma única fonte,
admitindo-os como única versão possível e inquestionável da realidade – já que
“cientificamente comprovada”.
Para que o jornalismo
científico e a divulgação da ciência, como um todo, cumpram seu devido papel,
eles devem reconhecer o processo de produção do saber científico como um dentre
os demais processos culturais da sociedade. A produção do conhecimento
científico, assim como as demais formas de produção de conhecimento abordadas
na mídia, sofre a constate intervenção ou se relaciona diretamente com
interesses políticos e econômicos, que raramente são discutidos em matérias de
conteúdo científico. E, por fim, os divulgadores da ciência devem sempre ter em
mente que os cientistas, assim como os demais profissionais, não são dotados
apenas de um raciocínio lógico e linear, mas também de sentimentos acumulados
ao longo de suas experiências pessoais, como ambições, intuições e vaidades, por
exemplo, o que contribui para tornar as versões científicas coletadas por um
repórter da ciência objeto de questionamento e crítica da divulgação.
A dinâmica do conhecimento científico
Ao analisar o fenômeno da difusão
do conhecimento científico, o linguista, poeta e pensador da divulgação
científica Carlos Vogt4 afirma que seu principal escopo e ponto de
chegada deva ser a consolidação do que chama de cultura científica. Vogt defende o uso dessa expressão por
acreditar que ela englobaria todos os objetivos da divulgação, que se estendem
desde a alfabetização científica de um público, ou seja, a transmissão dos
conceitos e fundamentos relacionados aos temas de caráter científico, à constituição
de uma percepção pública da ciência, lançando um olhar crítico sobre a mesma,
indispensável ao exercício de cidadania e ao entendimento do processo
científico como um fenômeno cultural.
Vogt ilustra, assim, a
dinâmica da cultura científica como uma espiral ascendente, representada em
duas dimensões a evoluir sobre dois eixos, um horizontal, do tempo, e outro
vertical, do espaço, definindo-se quatro quadrantes. Em cada quadrante, o
pesquisador posiciona as categorias constitutivas do desenvolvimento científico
e seus atores. À medida que a espiral se desenha, partindo do 1º quadrante, ou
quadrante da produção do conhecimento pela comunidade científica e de sua
difusão entre pares, ela vai, conceitualmente, definindo as etapas de evolução
de tal conhecimento.
Fig. 02 |
Iniciando em tal ponto, a
espiral passa ao 2º quadrante, do ensino de ciência e da formação de
profissionais ligados aos saberes da ciência, evoluindo ao 3º quadrante, que
enquadra a difusão do conhecimento pelos profissionais mencionados no 2º
quadrante, sejam eles professores, palestrantes ou curadores de museus de
ciência, entre outros. Por fim, a espiral completa seu ciclo ao atingir o 4º
quadrante, o das atividades próprias à divulgação científica, retornando,
naturalmente, ao eixo de partida. Ao mesmo eixo, sim, mas não ao mesmo ponto.
Ao descrever o movimento de sua espiral da cultura científica, o pesquisador
incrementa seu raciocínio ao apontá-la como uma espiral ascendente, afirmando
que a ciência, ao passar por diferentes etapas de difusão na sociedade, sofre
um processo de expansão, o qual atinge seu ápice com a divulgação científica.
A divulgação científica,
enfim, ao cumprir seu papel não apenas de meramente traduzir a linguagem
científica, mas ainda o de questionar e repensar seu processo criativo e
inovador, inclui-se entre os atores da própria produção do conhecimento,
ampliando e intensificando seu complexo e surpreendente universo.
***
1. Ab ovo – “do ovo”, em latim, também
entendido como “do princípio”.
2. Empirismo
e positivismo são doutrinas filosóficas e científicas do Iluminismo, movimento
de profundas transformações do pensamento ocidental que se originou na Europa,
no século XVII. Embora a interpretação para ambas as doutrinas seja complexa e
varie de acordo com o campo intelectual abordado, pode-se admitir, a título de
um entendimento amplo, que o empirismo consiste na compreensão de que todo
conhecimento se origina da experiência. O positivismo, no mesmo viés,
fundamenta o conhecimento nos fatos observáveis, conferindo à ciência e ao seu
método experimental o poder único de gerar, a partir da análise de dados
concretos, o verdadeiro conhecimento, livre de abstrações ou interpretações
metafísicas.
Para ler (Referencial bibliográfico):
BRAVERMAN, H. A revolução técnico-científica. In BRAVERMAN,
H. (Org.) Trabalho e Capital Monopolista:
a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, 3ª Ed.,
pp. 137-147.
CITELI, M.T. (2007). Ciência
e mídia: perspectivas a partir dos Estudos Sociais das Ciências. Texto
preparado especialmente para alunos da V Edição do Curso de Jornalismo
Científico do Labjor, Universidade Estadual de Campinas.
3. TEIXEIRA, M. Pressupostos do jornalismo de ciência no Brasil.
In: Massarini, L. et al. Ciência e
Público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa
da Ciência, 2002. pp. 133-42
4. VOGT, C. A. A espiral da cultura científica. In Boletim
de Ideias,Vol. 03. Fapesp: São Paulo, 2005, pp.3-33.
Fonte das figuras:
Fig 01 – The Concert in
the Egg, de Hyeronious Bosch. Disponível para download em http://www.hieronymus-bosch.org/The-Concert-in-the-Egg.html
Fig 02 – A Espiral da Cultura Científica. Disponível em http://www.oei.es/divulgacioncientifica/opinion0060.htm
Sobre o autor:
Pedro, obrigado pela divulgação! Vou imprimir o texto para ler. Me parece interessante! Paulinho
ResponderExcluirMais uma vez agradeço com carinho o convite e reitero meus votos de sucesso pro blog! Um grande beijo pra vcs: Pedro, Livia, Rafaela e Simeão!
ResponderExcluirTexto muito bom. Aborda,com muita propriedade, a complexa questão da divulgação científica.
ResponderExcluirLaura