Por Marco Aurélio de Gallo França
O Achado:
No início do ano de 2001, paleontólogos do Museu de
Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (MCN/FZB-RS) - Dr.
Jorge Ferigolo, Dra. Ana Maria Ribeiro e Dr. Ricardo Negri - com o apoio
financeiro do projeto Pró-Guaíba/BID, saíram em uma viagem de campo atrás de
sítios paleontológicos gaúchos que afloram rochas triássicas (período entre 245
e 205 milhões de anos atrás). Dentro da rota planejada para a viagem estava o
afloramento informalmente denominado de “posto”, pois o mesmo se encontra na
entrada da cidade de Dona Francisca, região central do Rio Grande do Sul, logo
atrás de um posto de gasolina que beira a estrada.
Após algum tempo de caminhada pelo afloramento, de
levanta e agacha pra ver se o que tem ali no chão é rocha, lixo ou fóssil, o
Jorge encontra alguma coisa que parecia interessante: “Ana, achei uma coisa
aqui que parece um crânio!!!”. Por ele ser um tanto brincalhão, ela duvidou
logo de cara. Mas após ir até o local, ambos confirmaram se tratar de um
crânio, e não pequeno (cerca de 30 cm de comprimento). Aí começava o que todo
paleontólogo faz quando encontra alguma coisa: escavar em volta pra ver se tem
mais fóssil preservado. E... não é que tinha!!! E não era pouca coisa não!
Mesmo no campo, coberto por sedimento, com a terra meio úmida, logo os
paleontólogos conseguiram identificar que o crânio estava conectado à um
pescoço... e este à uma cintura pélvica (bacia)... e esta numa cauda... e este
indivíduo quase completo estava com mais outros crânios e esqueletos!
Se achar um pedacinho quebrado pra nós paleontólogos
já é algo interessante, imagine o quão sensacional é achar um crânio e perceber
que existe mais coisa ainda ali junto! Passado a euforia, vem a parte chata e
braçal: tirar o fóssil do afloramento para levá-lo ao laboratório aonde será
preparado e estudado. Querendo preservar o material como estava no campo para
extrair mais dados de como os animais teriam morrido, eles fizeram um bloco
gigantesco, cerca de 6 metros quadrados e pesando em torno de meia tonelada.
Infelizmente, o bloco não agüentou... muito também por causa da chuva que
acompanhava os paleontólogos durante a extração do bloco. Sendo assim, o
material foi levado em partes para o Laboratório de Paleontologia da FZB. Lá, o
Negri começou a montar as partes do bloco e preparar o material durante seis
meses. Após isto, o material ficou por algum tempo sem ninguém estudá-lo ou
prepará-lo.
A Pesquisa:
Em 2007, outras pessoas entram na história. Numa ligação para o Jorge,
Max diz ter um aluno que tinha acabado o mestrado, Marco (no caso, eu), e ele
precisava de algum material fóssil para fazer seu doutorado. Acordos feitos,
Marco começa seus estudos com este material. Já possuía alguma experiência em
preparação e julgou que seria fácil preparar este material. Ledo engano... Na
primeira visita à capital gaúcha, já viu que o trabalho de preparação ia ser
difícil: o material era envolto por uma concreção férrica muito dura. Como o
material fóssil preservado é frágil, esta concreção em volta torna a preparação
muito difícil e demorada. Imagine que você tenha que tirar o grafite de dentro
de um lápis, mas ao invés de uma madeira mole e fácil de ser removida, este
lápis esteja envolto por um material muito mais duro, como um tubo de PVC.
Estilete, agulha, ponteira... nada disso sequer riscava a concreção. Começou-se
a usar, então, canetas pneumáticas [http://www.paleotools.com/products.html]. O que é isto? São instrumentos
muito parecidos com aquele motorzinho de dentista que se usa pra furar o dente
e extrais a cárie, mas ao invés de movimentos rotatórios, as canetas que se
usam na paleontologia realizam movimentos “pra frente e pra trás”. Mesmo assim,
o material era difícil de ser preparado. Havia dias que após 8 horas de
preparação, uma área “imensa” menor que uma moeda de um centavo era
preparado!!! E não era só isso. Estas canetas pneumáticas possuem tamanhos e
intensidades diferentes. Começou com uma de nível 1... ponteira quebrada. Nível
2... ponteira quebrada. Nível 3... ponta gasta em menos de um dia de trabalho.
Nível 4, usado em materiais grandes, como fêmur de titanossauro... começou a
funcionar. Só que as ponteiras duravam cerca de 15 dias e tinha o risco de quebrar
todo o material por conta do alto impacto, isso sem dizer que cada ponteira
desta custa cerca de 60 dólares!
Durante três anos e
meio, os fósseis iam sendo preparados e estudados concomitantemente. Até que no
final do ano passado, com dados suficientes já em mão, os paleontólogos decidem
publicar um artigo com os resultados deste trabalho (França et al., 2011). O material achado se
tratava de 9 indivíduos amontoados uns sobres os outros, com três crânio bem
preservados, e, à priori, todos pertencentes à uma nova espécie: Decuriasuchus quartacolonia.
FIGURA 3 – Crânios preservados de Decuriasuchus quartacolonia. Dois crânios foram preservados sobrepostos (acima) e o outro um pouco mais isolado (abaixo). |
Os animais desta espécie eram carnívoros (possuíam dentes pontiagudos
com margens serrilhadas), quadrúpedes e mediam cerca de 2,5 metros de
comprimento.
FIGURA 4 – Reconstituição de Decuriasuchus quartacolonia. |
Faziam parte um grupo chamado Rauisuchia. O que é isto? Hein?? Senta que
lá vem a sistemática... Entre todos os animais vivos atualmente, aves e
crocodilos são os mais aparentados entre si, formando um grupo denominado de
Archosauria. Estes dois grupos atuais são somente um resquício da
Biodiversidade do passado (clichê paleontológico! Hehehe). Os arcossauros se
diversificaram durante o período triássico em duas grandes linhagens (Brusatte et al., 2010): uma pró-aviana,
denominada de Ornithosuchia e da qual faz parte também os dinossauros (sim, ave
é um dinossauro!!!); e outra pró-crocodiliana, denominada de Pseudosuchia e da
qual faz parte vários grupos fósseis que se extinguiram no final do período
triássico, sendo os crocodilomorfos os únicos sobreviventes. Destes grupos que
se extinguiram estão os fitossauros (arcossauros aquáticos, com focinhos
alongados), aetossauros (arcossauros encouraçados, possuindo placas ósseas de
formatos diversos em suas costas), os ornitossuquídeos (arcossauros com crânios
esquisitos, com a mandíbula reduzida em comprimento e a ponta do focinho
voltada pra baixo) e os rauissúquios, ou Rauisuchia, do qual esta nova espécie
faz parte.
FIGURA 5 – Cladograma representando o parentesco entre os grupos de Archosauria. |
Este grupo era considerado até a década de 90 composto por grandes
predadores topo de cadeia, quadrúpedes e que tinham morfologia distinta da
bacia que permitia uma locomoção mais rápida. Entre os maiores da sua época nos
ecossistemas terrestres, podiam medir até 9 metros de comprimento. Existe um
crânio na UFRGS de aproximadamente um metro de comprimento, pertencente à
espécie Prestosuchus chiniquensis (Barberena, 1978). Durante
a década de 90, pesquisadores encontraram animais deste grupo que são bípedes,
desprovidos de dentes e provavelmente portando bicos córneos, como nas
tartarugas, como Effigia okeeffeae (Nesbitt & Norell, 2006) e
Shuvosaurus inexpectatus (Chatterjee, 1993). Mais recentemente, há indícios
fortes de que uma das espécies, Qianosuchus
mixtus (Li et al., 2006), possuía hábito aquático. Ou seja, Rauisuchia
representa um grupo muito mais diverso do que se aparentava até então.
FIGURA 6 – Exemplos de espécies de Rauisuchia, apresentando a diversidade de tamanho e hábitos. |
Entre estas novidades está Decuriasuchus. Foram encontrados 10 indivíduos naquele afloramento
no município de Dona Francisca, sendo que 9 deles estavam praticamente uns
sobre os outros. Como seus esqueletos estão praticamente articulados, pode-se
afirmar que eles estavam próximos uns dos outros antes de suas mortes,
demonstrando um comportamento social mais desenvolvido do que se pensava: grandes
répteis predadores tendem a viverem de forma mais isolada e não em
“comunidade”. Este aglomeração de indivíduos pode ter causa e consequências
diversas. Estudos apontam que aquela região no triássico era uma planície de
inundação, com períodos de secas drásticas e outros de chuvas intensas (Da
Rosa, 2005), o que pode ter servido de “refúgio” para estes animais.
FIGURA 7 – Imagem de uma planície de inundação atual com paisagem similar à considerada para a localidade aonde Decuriasuchus foi coletado. |
É comum espécies de animais predadores de porte menor,
caso do dinossauro Velociraptor,
viverem em bando para defesa de predadores maiores ou ainda para caçar em
bandos, o que poderia ter acontecido com Decuriasuchus.
A verdade é que a resposta dos porquês destes indivíduos estarem juntos é pura
especulação, mas é fato que eles viviam próximos uns dos outros. Paralelamente,
outros aglomerados da mesma espécie em arcossauros, embora raros, são mais
comum em dinossauros jurássico, sendo um comportamento social desenvolvido
descrito em vários grupos de dinossauros. No período triássico, afloramentos
possuindo vários indivíduos da mesma espécie são mais escassos, sendo descritos
em dinossauro terópode Coelophysis bauri
do novo México, EUA (Schwartz & Gillette, 1994), em dinossauro
sauropodomorfo basal Plateosaurus da
europa central (Sander, 1992), e no pseudossúquio Aetosaurus ferratus da Alemanha (Schoch, 2007). Todos estes são
datados do Triássico Superior (Noriano-Rhaetiano, aproximadamente entre 220 e
205 milhões de anos atrás). As rochas do afloramento “posto”, aonde foram
encontrados Decuriasuchus, são de
aproximadamente 235-240 milhões de anos atrás, podendo-se dizer que esta nova
espécie é o registro mais antigo de comportamento gregário em arcossauros.
Sobre o nome desta nova
espécie, há algumas curiosidades. Decuria/suchus: o termo “decuria” faz
referência à unidade do exército romano constituída por 10 soldados, como no
caso dos 10 indivíduos achados no afloramento e também em referência à uma
estrutura protuberante que existe no osso Nasal compartilhado por algumas
espécies do grupo Rauisuchia que foi descrito por Romer (1971) como sendo o
focinho tipo nariz romano; já “suchus” é um termo grego que se refere ao deus
egípcio com cabeça de crocodilo, fazendo referência ao posicionamento da
espécie na linhagem pró-crocodiliana. O nome específico “quartacolonia”
refere-se à região no interior do estado do Rio Grande denominada de Quarta
Colônia por ser a quarta região à abrigar os imigrantes italianos no século
passado e da qual faz parte o município de Dona Francisca, aonde foram
coletados os fósseis.
Citações Bibliográficas:
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111–129.
Brusatte S, Benton
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Nesbitt SJ, Norell MA
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Romer AS (1971) The
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Schoch RR (2007)
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Schwartz HL, Gillette
DD (1994) Geology and taphonomy of the Coelophysis quarry, Upper Triassic
Chinle Formation, Ghost Ranch, New Mexico. Journal of Palaentology
68:1118–1130.
Sobre o autor:
Marco Aurélio de Gallo França é paleontólogo brasileiro,
focado atualmente em pesquisas com arcossauros basais, mas já trabalhou com
outros grupos fósseis, como tartarugas e dinossauros. Está no doutorado na
Bologia Comparada (FFCLRP-USP/Ribeirão Preto), com a orientação de Max Cardoso Langer.
Gosta de cerveja, principalmente acompanhada de bons amigos. Para aliviar a
tensão, nas horas vagas dedica-se ao samba e a MPB, mas como hobby. Lattes.
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