Por Sarah S. Oliveira
Sou
bióloga, doutoranda, interessada em evolução, trabalhos de campo e insetos. Ao
longo de minha formação acadêmica obtive experiência de campo em áreas de
Cerrado e floresta Atlântica, até então a Amazônia era uma realidade distante.
Mas, os acasos sucessivos que regem a vida de todos nós, deixaram saudades de
uma Amazônia que pretendo voltar sempre.
Minha
primeira experiência (resultado de um convite para participar de uma expedição
de um mês ao alto Rio Negro, em julho de 2009) foi um tanto inusitada, por dois
motivos principais: a expectativa e a decepção.
Embarquei
em Campinas sorridente, muitíssimo feliz e ansiosa para conhecer esse universo
chamado Amazônia. Digo universo
porque não basta saber que é a maior floresta tropical do planeta, com expressiva
biodiversidade associada, formada por árvores de grande porte em um solo
muitíssimo pobre altamente dependente dos nutrientes resultantes da
decomposição da serrapilheira. Universo
porque não há livro didático e noticiário social ou científico que transmita a
quem não a conhece a noção espacial exata do que é essa imensa floresta! Em um
vôo de 3h40 até Manaus, duas horas se dão sobre floresta, mata nativa intocada,
e isso é apenas a porção leste da floresta, muito menor do que toda a região
entre Manaus e o oeste da América do Sul (aproximadamente 2400Km). O triste é
saber que voamos boa parte do tempo (aproximadamente 40 minutos) sobre área
desmatada, hoje plantação de soja e algodão no Mato Grosso, e que outrora essa
paisagem seria outra. Eu não sou contra ocupações humanas e sei que as
plantações permitem que as pessoas comam e se vistam. O problema é como se dá
boa parte dessas ocupações. Hoje se sabe que a floresta, explorada de forma
adequada (p.ex. manejo sustentável da pesca, agricultura e pecuária, produção
de açaí, castanha-do-pará e madeira), permite conciliar ocupação humana e áreas
não desmatadas. Mas essa informação não é levada em conta na maioria das vezes,
infelizmente.A decepção, apesar do negativismo que cerca a palavra, transformou-se em um grande aprendizado humanitário. Depois de quatro dias subindo o Rio Negro em direção aos limites dos estados do Amazonas e Roraima, sob escolta de garças e botos, nosso barco naufragou nas proximidades da Comunidade São José, Igarapé do Malalahah. Felizmente nenhum ferido e poucas perdas materiais, mas não conseguimos coletar. Passamos um dia no salão de festas de uma comunidade ribeirinha, cercados pela curiosidade das crianças, pelas “guloseimas” calóricas retiradas do naufrágio, bebendo água do igarapé e comendo mandioca cozida preparada pelas mães da comunidade. Os homens não estavam presentes, exceto os mais idosos. Ficam dias na mata recolhendo piaçava (ou piaçaba), fibras utilizadas para produzir vassouras. Periodicamente voltam à comunidade para rever suas famílias e comercializar os enormes fardos de fibras. Esse dinheiro é utilizado para comprar gasolina para o gerador (utilizado para iluminar a comunidade poucas horas à noite) e mantimentos industrializados. As crianças recebem atendimento médico periódico, são alfabetizadas na escola da comunidade e muito curiosas em relação ao restante do mundo, já que há uma televisão comunitária em que assistem o Jornal Nacional e a novela das “oito” todos os dias. Depois disso as luzes se apagam e a lua cumpre o seu papel.
Posso dizer que a experiência de dormir ao relento, sob a luz da lua, ao som das águas negras e do capitão-da-mata (uma ave que tem um canto muito alto e característico) nos faz repensar profundamente nosso lugar na natureza e a maneira desleal com que o homem tem interagido com o meio ambiente.
No dia
seguinte fomos resgatados por uma embarcação vinda de Barcelos, retornamos à Manaus
e, por terra, fomos coletar no município de Presidente Figueiredo.
A
comunidade de Figueiredo, ao contrário da que conheci no alto Rio Negro, tem
energia elétrica. Mas me surpreendi ao saber que a luz na região data de 2006
(programa “Luz para todos”), em uma comunidade a apenas 70Km de asfalto de Manaus.
A melhor palavra para explicar isso, a meu ver, é descaso das autoridades públicas. A mandioca e a caça são a base da
alimentação e o dinheiro do “Bolsa família” é gasto com mantimentos como arroz
e feijão. Todos vão à escola, inclusive os pais.
É muito
interessante ver pai, mãe e filhos caminhando no meio da tarde em direção à
escola e voltando tarde da noite. Como viajamos para coletar insetos, com
armadilhas espalhadas ao entorno da comunidade e nas trilhas, corriqueiramente
eles param nas armadilhas, perguntam, aprendem, e se perdem novamente na
escuridão.
Diferente,
mas interessante é ver a mata transpirar por horas após uma chuva efêmera e
continuar “chovendo” em seu interior mesmo que a chuva já tenha cessado por
completo. O calor e a umidade são indescritíveis, a sensação é de como se tivéssemos
tomado muita chuva enquanto caminhando sob o sol por horas .... E horas ... E horas
.... mesmo que não tivesse chovido.
As
árvores geralmente são muito altas, com troncos finos e roliços (estioladas),
galhadas apenas nas copas, de forma que a paisagem torna-se bastante
repetitiva, explicando a grande quantidade de episódios em que muitos viajantes
inexperientes se perdem. Mas a mata em si não é difícil de ser adentrada. O
solo é regular facilitando o acesso, muito diferente dos remanescentes de
Floresta Atlântica, em que o terreno é geralmente íngreme, com predomínio de
arbustos. Nada melhor que um mateiro (pessoa da região com um grande
conhecimento da mata local) para nos levar aos diferentes ambientes dentro da
mata (campinas, cachoeiras, igarapés, bromélias aos montes no chão, etc.) e
ensinar nomes populares da natureza ao redor. É interessante notar que a
paisagem não é a mesma ao longo de toda a floresta, e que a mesma não é
composta apenas por áreas planas e rios calmos. Particularmente gostei do
“mulateiro”, uma árvore com tronco vermelho vivo, fácil de reconhecer de longe,
e da famigerada castanha-do-Pará ou castanha-do-Brasil, árvore imponente com
seus ouriços repletos de castanhas.
Durante
as coletas, o panorama geral é bem diferente. O material coletado por meio dos
diferentes tipos de armadilhas é muitíssimo variável, inusitado, colorido e
vistoso. Muitas espécies encontradas certamente são novas, já que a região é
pouco estudada, mas isso só é confirmado após exaustivos estudos realizados por
especialistas e publicados em artigos científicos.
Este
ano voltei à Manaus (em junho de 2010). Dessa vez sem naufrágio coletamos ao
longo das matas dos afluentes ao norte do Rio Negro. Exploramos os Rios Aracá e
Padauari. As impressões dessas águas escuras ficam para uma próxima postagem.
Sobre a autora:
Sarah Siqueira
de Oliveira é bióloga, estudante de doutorado, interessada
em evolução, trabalhos de campo, insetos, sistemática filogenética,
biogeografia, educação e ensino de ciências. Escreve ensaios sobre diversos
temas em biologia e divulga eventos de interesse geral no blog Forma, Tempo e Espaço. Lattes.
Fotos de Sarah Oliveira, Chico Felipe e Josenir
Câmara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário