Por Renato S. Capellari
Imagine-se
grego. Imagine-se também, além de grego, mais de cinco séculos antes de Cristo.
Se já isso lhe parecer difícil, não achará pior imaginar-se grego, há mais de
dois mil e quinhentos anos, e com uma pergunta virulenta dentro de sua cabeça,
que lhe retire o sono. Uma pergunta verdadeiramente complexa. Por exemplo:
quais moscas, na sua vasta coleção de moscas, são moscas de uma mesma espécie?
Ou então, que virulenta espécie de pergunta é essa, sobre moscas, que lhe retira
o sono? Nessa situação, você poderia levantar preces a Hipnos, deus do sono, ou
então a Apolo, e buscar por uma resposta no oráculo de Delfos, templo dedicado a
esse deus solar da Verdade e da Razão.
O
famoso oráculo da cidade de Delfos era conhecido por oferecer respostas verdadeiras
a todas as perguntas, por mais complexas que fossem. E aqui podemos entrar num
outro assunto interessante: o das perguntas complexas. Em lógica, existe um
tipo de raciocínio falacioso chamado de pergunta
complexa. Ele consiste na formulação de uma pergunta que contenha, implicitamente,
outra questão embutida, a qual pode ser usada para se extrair uma conclusão enganosa
a partir da resposta dada. Um investigador inquirindo um suspeito poderia lhe dirigir
a seguinte pergunta: “o que você fez com o dinheiro que roubou?”, “nada,
senhor...”, “a-há!: então você confessa que roubou o dinheiro!” Apesar de
artificial e um pouco extravagante, o diálogo é ilustrativo. Há, em verdade,
duas perguntas: “você roubou o dinheiro?” e “o que você fez com o dinheiro
roubado?” (que só faz sentido se a resposta à primeira pergunta for positiva).
Quando o interlocutor responde à segunda, sua resposta é usada para inferir,
falaciosamente, uma resposta à primeira (que ele roubou o dinheiro). Contudo, argumentos
falaciosos que utilizam a estrutura da pergunta complexa não costumam ser tão
explícitos e, quando usados de maneira tácita, podem ser bastante persuasivos
ao ouvinte menos atento. É comum que oradores utilizem uma pergunta retórica
com esse sentido: perguntam maliciosamente ao público e, ao responderem eles
mesmos de forma falaciosa, dão continuidade ao raciocínio já desvirtuado pela
falácia da pergunta complexa. Quando usada com sutileza, a pergunta complexa pode
passar de aberração argumentativa a um eficiente truque de convencimento.
"A sacerdotisa de Delfos" |
Voltemos, entretanto, ao seu assunto de moscas, pois você, grego há dois mil e quinhentos anos, foi a Delfos, pedir os conselhos do oráculo. Diz-se que a pítia, a sacerdotisa do templo, recebia as respostas num estado delirante, após inalar os vapores que fumegavam de fendas na rocha daquele lugar. As adivinhações e profecias, conta-se, eram recebidas de Gaia, a divindade da Terra, de onde exalavam os inebriantes vapores.
James Ephraim Lovelock |
E
aqui, permitam-me novamente, podemos entrar num outro assunto interessante: o
da hipótese Gaia. Na cosmogonia
grega, Gaia é uma divindade primordial que trouxe harmonia ao caos inicial das
eras primitivas. Através de sua força geradora, concebeu vários filhos, dentre
eles Urano. Urano foi derrotado por Cronos, que também era filho de Gaia.
Cronos foi vencido por Zeus. Zeus que era filho de Cronos. Mas deixemos de lado
a tão confusa genealogia olímpica e foquemos em Gaia. Na segunda metade
do século passado, o pesquisador James Lovelock propôs a idéia de que o planeta
Terra funciona como um super-organismo que regula a si mesmo em direção a um
equilíbrio. Essa hipótese foi posteriormente chamada de hipótese Gaia, em
referência à deusa Terra que era capaz de, sozinha, gerar a vida. O cerne dessa hipótese reside na
proposição geral de que a vida sustenta a vida, isto é, a interação entre os
diversos ecossistemas cria, de forma regulada, as próprias condições
necessárias à manutenção da vida. Essa regulação seria semelhante ao que é
observado em sistemas orgânicos em geral, onde ocorre um equilíbrio
homeostático. Diferente da homeostase, porém, que é um equilíbrio de estado (a regulação por homeostase
promove o retorno a um estado anterior), o equilíbrio evocado no funcionamento
de Gaia é o equilíbrio de processo,
também chamado de homeorrese. Nesse caso, o que existe é um retorno ao processo
de busca pelo equilíbrio, e não necessariamente o retorno ao estado anterior.
Nesse tipo de regulação, abrem-se possibilidades para o estabelecimento de
equilíbrios mais bem organizados diante da nova situação, de forma dinâmica. Quando
surgiu, e até os dias de hoje, a idéia comoveu tanto pela simpatia como pela
antipatia. Os simpáticos às proposições de Lovelock vão desde cientistas até
pessoas fora do meio acadêmico que vêem Gaia como a personificação de algo que
permeia a natureza, de forma quase espiritualizada. A despeito das leituras
tidas como menos científicas da hipótese de Lovelock, há respaldo por parte de
pesquisadores, em especial estudiosos do clima, que interpretam as atuais
condições climáticas como um sinal responsivo de Gaia frente a fatores
principalmente antrópicos (como a queima de combustíveis fósseis e emissão de
outros gases poluentes).
"Medéia" |
Os
avessos a Gaia, contudo, não são poucos. Uma das mais recentes manifestações
contrárias à leitura de Lovelock para o planeta Terra foi feita por Peter Ward,
paleontólogo, em seu livro “A hipótese Medéia”. A figura mitológica da
feiticeira Medéia é mais bem conhecida pelo seu lado sombrio: casada com Jasão,
ela mata os próprios filhos nascidos dessa união como forma de vingança contra
o herói. Ward empresta a metáfora de Medéia para descrever a dinâmica da Terra
com a biosfera que a povoa: os sistemas vivos são auto-destrutivos, pois seus
processos conduzem a condições abióticas que tendem a extinguir a vida.
Preferindo-se
Gaia a Medéia, uma das suposições possíveis seria a de que conservar o meio
ambiente tem um valor em si mesmo, intrínseco, uma vez que a preservação dos
ecossistemas contribui com a manutenção da vida. Diante disso, a alguns poderia
ter soado estranha a recente declaração de Lovelock a esse respeito: “Tentar
salvar o planeta é bobagem, porque não podemos fazer isso. Se for salva, a
Terra vai se salvar sozinha, que é o que sempre fez. A coisa mais sensível a se
fazer é aproveitar a vida enquanto podemos” (informe-se mais sobre isso com este
post). E neste ponto eu gostaria de desenvolver um pouco além a estrutura
da pergunta complexa. Como regra geral, qualquer falácia se constitui de
premissas que não levam à conclusão apresentada. Ou seja, não há encadeamento
lógico entre as premissas para se inferir a conclusão proposta (a qual é, portanto,
falaciosa). A pergunta complexa não foge a esse esquema, como visto acima, e
sua essência pode estar presente em vários raciocínios que não são constituídos
por estruturas interrogativas. Acontece, por exemplo, quando uma idéia é negada
e, a partir disso, uma idéia oposta a ela é afirmada. Concluir que uma
afirmação é verdadeira porque sua oposta é falsa só é válido se os atributos em
questão forem genuinamente contrários, isto é, “ou isto, ou aquilo”, nada
existindo entre ambos. Por exemplo, à pergunta “esta mulher é gestante?” só
existem duas respostas: “sim” e “não” (uma vez que não há nada entre grávido e
não-grávido). Portanto, se nego que uma mulher é grávida, ao mesmo tempo afirmo
que ela não é gestante. Igualmente, ao negar que uma mulher não é grávida,
afirmo que ela é gestante. Isso pode parecer obviedade. Contudo não é sempre
óbvio quais atributos são genuinamente contrários (quando são do tipo “ou isto,
ou aquilo”), de modo que, ao responder negativamente a uma pergunta, seja
logicamente cabível inferir seu contrário. A declaração de Lovelock acima
transcrita diz respeito a quê? A sentença “salvar o planeta é possível” é
negada. O importante aqui é o que não
podemos concluir dessa premissa. Não se infere dessa declaração que, uma vez
não sendo possível salvar o planeta, é cabível deixá-la ao descaso (“se salvar
sozinha”), ou mesmo permitir que uma crise ambiental aumente em decorrência de
“aproveitar a vida enquanto podemos”, esgotando os recursos do planeta. Lovelock
não afirma essas coisas. Mas essas são leituras possíveis: falaciosas, mas
possíveis. As respostas requerem inspeção quando as perguntas podem carregar
mais de um sentido, isto é, quando são complexas.
Gaia |
Gaia,
na realidade, pode absolutamente não existir. Entretanto nós existimos (ao
menos de alguma forma: mas deixemos isso para depois, pois já lhe sugeri muitas
perguntas complexas por ora). Isso significa que deveríamos nos posicionar
diante do que acontece no planeta, permeie-o Gaia ou não. A “sensível” sugestão
de Lovelock é aproveitar a vida enquanto podemos, isto é, praticar o carpe diem. O carpe diem, entretanto, é
uma filosofia surgida com o final do Império Romano, num cenário em que a
decadência insuflava nas pessoas o desejo de aproveitar a vida ao máximo, sem
se importar com o amanhã (uma vez que pode não haver amanhã). Sentenças como “o
funcionamento de Gaia não existe” ou “a Terra vai se salvar sozinha”, assim
como muitas outras asserções relacionadas ao tema meio ambiente, não significam
que podemos esgotar o planeta, vivendo um carpe diem descontrolado. Não há
encadeamento lógico entre essas idéias e uma suposta conclusão – falaciosa –
que afirme ser cabível abster-se de posicionamento ou mesmo resignar-se frente
ao estado de coisas que há.
A esta altura, se
você ainda fosse grego, poderia muito bem achar que estamos falando grego,
misturando tanto assunto à sua complexa pergunta. Gaia talvez tivesse lhe
indicado uma resposta melhor em sua consulta ao oráculo, através dos vapores
inalados pela pítia. De todo modo, seria pertinente que qualquer resposta
oferecida fosse inspecionada, uma vez que uma pergunta complexa pode
surpreendê-lo a qualquer momento com uma resposta ainda mais complexa: um
genuíno presente de grego.
Uma nova espécie de mosca? |
* Este texto é o terceiro de uma série
sobre temas de lógica, publicados no IB,
o síntese, informativo do centro acadêmico “V de Junho” do Instituto de
Biociências da UNESP de Botucatu. As primeiras notas podem ser lidas aqui
e as segundas, aqui.
Sobre o autor:
Renato
Soares Capellari é
biólogo e aluno de doutoramento em entomologia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Trabalha diretamente com taxonomia e tem
interesse em responder que moscas de sua coleção são de uma mesma espécie. Lattes.
Possibilidades de leitura:
1 – Sobre Gaia: A vingança de Gaia (Intrinseca), de James Lovelock.
2 – Sobre Medeia: leia aqui o primeiro
capítulo do livro de Peter Ward, The Medea hypothesis: is life on Earth
ultimately self-destructive? (Princeton University Press).
3 – Sobre
lógica: Lógica indutiva e probabilidade,
de Newton da Costa (Hucitec); Introdução
à lógica, de Irving Copi (Mestre Jou).
Legendas das figuras:
[1] "A sacerdotisa de Delfos",
de John Collier.
[2] James Ephraim Lovelock (1919 –
atual)
[3] "Medéia", de Paul Cézanne
[4] Gaia
[5] Uma nova espécie de mosca?
Fonte: o autor
Muito interessante o texto! Parabéns!
ResponderExcluirAgradecemos o comentário e participe sempre! :)
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCara Rafaela, fazia tempo que não voltava ao seu blog para apresentar, sempre fatídicamente, minhas percepções sobre o texto de vossos colaboradores. Se me permitir faço algumas considerações a respeito de alguns pontos que me chamaram a atenção:
ResponderExcluirPrimeira consideração: o autor (na primeira frase do parágrafo 6) demonstra uma 'predileção' pela hipótese de Gaia, em detrimento da hipótese da Segunda Lei da Termodinâmica (Medéia). Predileções fazem mal ao conhecimento e em geral impugnam o valor do debate.
A Hipótese de Gaia nega peremptoriamente a Segunda Lei da Termodinâmica (aumento da entropia), nega a hipótese da Evolução das Espécies (pois em algum momento não havia espécies), e ainda é menos que qualquer uma das grandes religiões no que tenta explicar.
No que tange a impugnação de uma debate, há um livro sobre clima (já que o autor discute o tema), chamado Os Senhores do Clima, que toma a Teoria do Leverlock como uma paradigma para sua abordagem. Contudo o autor diz logo na primeira parte do primeiro capítulo que provavelmente a teoria de Loverlock esta incorreta - em função de impugnações já feitas por diversos outros autores. Mas como o autor afirma ter predileção por essa teoria, ele decide interpretar todos os dados sobre o clima (que ele seleciona como relevantes, em um universo obviamente muito maior) a luz desse mesmo paradigma (Hipótese de Loverlock). Enfim, o leitor passa toda leitura se perguntando se ele é mais idiota por ler, que o autor do mesmo por ter escrito aquilo. Opinião: sem dúvida o leitor, pois pagou pelo livro.
Segunda consideração: discordo do autor quanto ao seu posicionamento afirmativo sobre a falácia das perguntas complexas. Por exemplo, quando você responde ao inquérito sobre as relações de parentesco entre duas espécies você está tomando como verdadeiro a maior parte do conhecimento que se consolidou como teoria evolutiva, pois obviamente, se não acreditasse em evolução não poderia responder a essa pergunta.
Em outras palavras você respondeu positivamente a dois séculos de especulação sobre uma possível teoria de evolução das espécies ao responder uma pergunta cotiana a sua rotina de pesquisadora (ningém pode lhe considerar isenta da responsabilidade de ter respondido positivamente a pergunta: a teoria da evolução é a explicação para diversidade biológica? - a pergunta é complexa e a resposta assimila essa complexidade). Logo qualquer pergunta é eminentemente complexa, e é necessário que seja assim. A ciência é uma construção coletiva e quando você afirma fazer alguma contribuição para a mesma esta em fatos aceitando tudo que os outros fizeram até aquele momento. Coloca uma telha porque aceita que existem tijolos e esses estão colocados de forma correta.
Creio que o debate já estaria por si impugnado nos termos que foram propostos, mas ainda gostaria de tecer um comentário sobre o carpe diem "romano". O carpe diem é um conceito derivado da filosofia de Epicuro, que mais se parece com uma religião embrionária (uma discussão do tema em: O Jardim das Aflições - Olavo de Carvalo - Editora É Realizações), e é claro que esse conceito faz parte da própria estrutura da modernidade.
Pois se a modernidade ocidental já precindiu do cristianismo e já aceita o materialismo como filosofia única necessária para explicar a realidade e o epicurismo como a própria redenção da humanidade, qualquer coisa diferente de uma carpe diem é retardamento mental. Mesmo que o carpe diem de cada um de nós seja a inutilidade de descrever os pormenores dos processos genéticos que podem ter determinado a história da biodiversidade ou qualquer coisa parecida com isso.
Contudo, se alguem diz que retidão moral e ética, e uma ontogenia espiritual associada a cada ser humano são fatores pertencentes a unidade da realiade - quero dizer a unidade objetiva da realidade, então ciência nunca poderia ser o que todos no blog disseram que é, pois estaria impugnando o materialismo científico e a própria validade do método.
Ramon Galhardo D Lopes Carvalho
ex-aluno da FFCLRP