Por Felipe Chinaglia Montefeltro
Os crocodilianos, como são convencionalmente
denominadas as espécies viventes de jacarés, crocodilos e gavial, sempre me
fascinaram. A idéia de um grande predador de “sangue frio” capaz de subjugar os
tão famigerados animais de “sangue quente” me encanta desde sempre. Em minha
opinião, uma das seqüências de imagens mais impressionantes já registradas,
repetidamente exibidas em programas de vida selvagem (felizmente!), são as manadas
de gnus durante sua migração anual atravessando os rios do parque nacional do
Serengeti (Tanzânia, África), enquanto crocodilos do Nilo (Crocodylus niloticus) lançam seus ataques fulminantes. Alguns
destes crocodilos alcançam mais de 4,5 metros, e suas mandíbulas são capazes de
prender facilmente o dorso de um gnu adulto, que dificilmente escapa quando o
ataque é bem sucedido.
Os crocodilianos, formalmente
incluídos num grupo maior, conhecido por Crocodyliformes, representam uma
ínfima parte de toda a diversidade das mais de 50.000 espécies de vertebrados. Atualmente
são reconhecidas 23 espécies para os crocodiliformes, perfazendo por volta de
0,046% dos táxons conhecidos de vertebrados viventes. Esta mínima porção fica
evidenciada quando comparamos os crocodilianos às mais de 25,000 espécies de peixes
de nadadeira raiada (Actionopterygii) ou às mais de 9,100 espécies de aves. As
23 espécies são incluídas em 8 gêneros e 3 famílias exibindo uma distribuição
circuntropical. A família Gavialidae abrange um único gênero e uma única espécie,
Gavialis gangeticus, que se distribui
do Paquistão até Myanmar. A Família Crocodylidae apresenta a distribuição mais
ampla do grupo circunscrevendo três gêneros (Crocodylus, Tomistoma e
Osteolaemus) que se distribuem pela América Central, norte da América do
Sul, África subsaariana, Índia oriental, sudeste asiático (continental e
insular) e Oceania, incluindo a região norte da Austrália. A família restante
(Alligatoridae) inclui os “jacarés” e aligátores. Esta família inclui 4 gêneros
(Alligator, Cayman, Melanosuchus e Paleosuchus) e
possui distribuição por toda a América tropical, além de uma única espécie (Alligator sinensis) ocorrendo no extremo
leste da China, o que representa uma interessante questão biogeográfica.
Crocodylus niloticus
Gavialis gangeticus
Alligator sinensis
Prescindindo a inegável afirmação de que
a “similaridade existe nos olhos do observador”, todas as espécies atuais de
crocodilianos apresentam ecologia e morfologia muito semelhantes, acarretando
na idéia de um grupo monótono e homogêneo. Esta visão é extrapolada também para
toda a história evolutiva dos Crocodyliformes. Tal extrapolação ocorre porque, com
base nos fósseis, é possível reconhecer que durante grande parte da história
evolutiva do grupo houve formas semi-aquáticas predadoras de espreita e com
focinho comprimido, que de uma maneira geral são semelhantes às formas atuais. Deste
modo, concluiu-se que o grupo como um todo permaneceu morfologicamente estático
desde o Mesozóico (250-65 milhões de anos). Buckland foi o primeiro a afirmar
(em uma tradução livre) em 1836 que “os répteis fósseis da família crocodiliana
não se diferenciam muito dos gêneros viventes não requerendo qualquer descrição
sobre algo peculiar”. Nem mesmo a adoção do paradigma evolutivo foi capaz de alterar
tal perspectiva de imediato.
Todavia, esta visão vem se alterando ao
longo das últimas décadas, especialmente com a descoberta, e reavaliações, de alguns
fósseis de Crocodyliformes de morfologia peculiar conjuntamente com novas
análises filogenéticas para o grupo. Neste contexto, o Brasil contribuiu muito
com a mudança sobre o entendimento da evolução do grupo. Formas encontradas em
rochas do Cretáceo (150-65 milhões de anos) do Brasil têm sugerido a existência
de hábitos alimentares diferentes da atual “carnívora estrita” encontrada para
as espécies recentes. Como por exemplo, Sphagesaurus
huenei e Candidodon itapecuruensis
que possuem dentição posterior diferenciada que possivelmente estariam
relacionadas a alimentação onívora ou herbívora. Ainda, as famílias
Baurusuchidae e Peirosauridae, que não são restritas ao Brasil, representam
formas predadoras de médio porte, com dentes curvados portando margens
serrilhadas, lembrando dentes de dinossauros carnívoros terópodes. A morfologia
de sua narina externa, coluna e membros sugerem, ainda, que seriam animais
terrestres e predadores ativos.
Outros muitos exemplos de fósseis de
Crocodyliformes recém descobertos (ou reestudados) poderiam ser citados como
exemplos de mudanças no entendimento sobre a evolução do grupo; alguns, como os
supracitados, exemplificam tal mudança em vários aspectos, outros simplesmente
alteram sutilmente a percepção sobre uma única característica. Adicionalmente
às morfologias incomuns destes fósseis, as análises filogenéticas atuais apontam
algo também interessante. Tais estudos apontam que espécies semi-aquáticas
predadoras de espreita e com focinho comprimido são associadas a diferentes grupos,
tendo sido selecionadas independentemente mais de uma vez durante a evolução do
grupo. Sendo assim, baseada no conhecimento atual sobre a evolução do grupo, a
morfologia aparentemente “primitiva” dos Crocodyliformes atuais deve ser
encarada como algo modificada, não havendo justificativas para encarar estes
animais como fósseis vivos inalterados por milhões de anos. O que, em minha
opinião, tornaria ainda mais interessante as imagens dos crocodilos atacando um
bando de gnus no Serengeti. Agora não mais como monstros primitivos, resquícios
de um mundo antigo dominado por répteis gigantes, mas sim, um grupo de predadores
relativamente recentes e especializados!
Sphagesaurus montealtensis
Sphagesaurus montealtensis
Montealtosuchus arrudacamposi
Fonte das
figuras e Para saber mais:
Diversidade de Crocodiliformes:
Crocodylus niloticus: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/39/Crocodylus_niloticus.jpg
Gavialis gangeticus: http://www.biolib.cz/IMG/GAL/7992.jpg
Alligator sinensis: http://www.brim.ac.cn/brime/bdinchn/photo/29.jpg
As figuras e reconstituição do Sphagesaurus montealtensis foi retirado de:
Andrade MB,
Bertini RJ. 2008. A new Sphagesaurus
(Mesoeucrocodylia: Notosuchia) from the Upper Cretaceous of Monte Alto City
(Bauru Group, Brazil), and a revision of the Sphagesauridae. Hystorical
Biology 20:101-136.
Já a foto do Montealtosuchus
foi retirada de
Carvalho
IS, Vasconcellos FM, Tavares SAS. 2007. Montealtosuchus arrudacamposi, a new peirosaurid crocodile
(Mesoeucrocodylia) from the Late Cretaceous Adamantina Formation of Brazil. Zootaxa 1607:35-46.
Sobre o autor:
Felipe
Chinaglia Montefeltro
é doutorando em Biologia Comparada pela FFCLRP-USP, concentra seus estudos nas
relações filogenéticas dos Rhynchosauria e Crocodyliformes. Apesar de ter se
envolvido com os estudos dos fósseis desde os primeiros passos da carreira
acadêmica (como resultado de uma infância e adolescência "dinonerd"),
se interessa em quase qualquer assunto em que a biologia esteja envolvida,
especialmente evolução. Lattes.
nossa...não sabia que esses bichos eram assim desde de o mesozóico! super interessante!!!
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