sexta-feira, 2 de julho de 2010

Monstros primitivos inalterados por milhões de anos?

Por Felipe Chinaglia Montefeltro

Os crocodilianos, como são convencionalmente denominadas as espécies viventes de jacarés, crocodilos e gavial, sempre me fascinaram. A idéia de um grande predador de “sangue frio” capaz de subjugar os tão famigerados animais de “sangue quente” me encanta desde sempre. Em minha opinião, uma das seqüências de imagens mais impressionantes já registradas, repetidamente exibidas em programas de vida selvagem (felizmente!), são as manadas de gnus durante sua migração anual atravessando os rios do parque nacional do Serengeti (Tanzânia, África), enquanto crocodilos do Nilo (Crocodylus niloticus) lançam seus ataques fulminantes. Alguns destes crocodilos alcançam mais de 4,5 metros, e suas mandíbulas são capazes de prender facilmente o dorso de um gnu adulto, que dificilmente escapa quando o ataque é bem sucedido.
            Os crocodilianos, formalmente incluídos num grupo maior, conhecido por Crocodyliformes, representam uma ínfima parte de toda a diversidade das mais de 50.000 espécies de vertebrados. Atualmente são reconhecidas 23 espécies para os crocodiliformes, perfazendo por volta de 0,046% dos táxons conhecidos de vertebrados viventes. Esta mínima porção fica evidenciada quando comparamos os crocodilianos às mais de 25,000 espécies de peixes de nadadeira raiada (Actionopterygii) ou às mais de 9,100 espécies de aves. As 23 espécies são incluídas em 8 gêneros e 3 famílias exibindo uma distribuição circuntropical. A família Gavialidae abrange um único gênero e uma única espécie, Gavialis gangeticus, que se distribui do Paquistão até Myanmar. A Família Crocodylidae apresenta a distribuição mais ampla do grupo circunscrevendo três gêneros (Crocodylus, Tomistoma e Osteolaemus) que se distribuem pela América Central, norte da América do Sul, África subsaariana, Índia oriental, sudeste asiático (continental e insular) e Oceania, incluindo a região norte da Austrália. A família restante (Alligatoridae) inclui os “jacarés” e aligátores. Esta família inclui 4 gêneros (Alligator, Cayman, Melanosuchus e Paleosuchus) e possui distribuição por toda a América tropical, além de uma única espécie (Alligator sinensis) ocorrendo no extremo leste da China, o que representa uma interessante questão biogeográfica.



Crocodylus niloticus
Gavialis gangeticus
Alligator sinensis

Prescindindo a inegável afirmação de que a “similaridade existe nos olhos do observador”, todas as espécies atuais de crocodilianos apresentam ecologia e morfologia muito semelhantes, acarretando na idéia de um grupo monótono e homogêneo. Esta visão é extrapolada também para toda a história evolutiva dos Crocodyliformes. Tal extrapolação ocorre porque, com base nos fósseis, é possível reconhecer que durante grande parte da história evolutiva do grupo houve formas semi-aquáticas predadoras de espreita e com focinho comprimido, que de uma maneira geral são semelhantes às formas atuais. Deste modo, concluiu-se que o grupo como um todo permaneceu morfologicamente estático desde o Mesozóico (250-65 milhões de anos). Buckland foi o primeiro a afirmar (em uma tradução livre) em 1836 que “os répteis fósseis da família crocodiliana não se diferenciam muito dos gêneros viventes não requerendo qualquer descrição sobre algo peculiar”. Nem mesmo a adoção do paradigma evolutivo foi capaz de alterar tal perspectiva de imediato.
Todavia, esta visão vem se alterando ao longo das últimas décadas, especialmente com a descoberta, e reavaliações, de alguns fósseis de Crocodyliformes de morfologia peculiar conjuntamente com novas análises filogenéticas para o grupo. Neste contexto, o Brasil contribuiu muito com a mudança sobre o entendimento da evolução do grupo. Formas encontradas em rochas do Cretáceo (150-65 milhões de anos) do Brasil têm sugerido a existência de hábitos alimentares diferentes da atual “carnívora estrita” encontrada para as espécies recentes. Como por exemplo, Sphagesaurus huenei e Candidodon itapecuruensis que possuem dentição posterior diferenciada que possivelmente estariam relacionadas a alimentação onívora ou herbívora. Ainda, as famílias Baurusuchidae e Peirosauridae, que não são restritas ao Brasil, representam formas predadoras de médio porte, com dentes curvados portando margens serrilhadas, lembrando dentes de dinossauros carnívoros terópodes. A morfologia de sua narina externa, coluna e membros sugerem, ainda, que seriam animais terrestres e predadores ativos.
Outros muitos exemplos de fósseis de Crocodyliformes recém descobertos (ou reestudados) poderiam ser citados como exemplos de mudanças no entendimento sobre a evolução do grupo; alguns, como os supracitados, exemplificam tal mudança em vários aspectos, outros simplesmente alteram sutilmente a percepção sobre uma única característica. Adicionalmente às morfologias incomuns destes fósseis, as análises filogenéticas atuais apontam algo também interessante. Tais estudos apontam que espécies semi-aquáticas predadoras de espreita e com focinho comprimido são associadas a diferentes grupos, tendo sido selecionadas independentemente mais de uma vez durante a evolução do grupo. Sendo assim, baseada no conhecimento atual sobre a evolução do grupo, a morfologia aparentemente “primitiva” dos Crocodyliformes atuais deve ser encarada como algo modificada, não havendo justificativas para encarar estes animais como fósseis vivos inalterados por milhões de anos. O que, em minha opinião, tornaria ainda mais interessante as imagens dos crocodilos atacando um bando de gnus no Serengeti. Agora não mais como monstros primitivos, resquícios de um mundo antigo dominado por répteis gigantes, mas sim, um grupo de predadores relativamente recentes e especializados!


Sphagesaurus montealtensis
Sphagesaurus montealtensis

Montealtosuchus arrudacamposi

Fonte das figuras e Para saber mais:

Diversidade de Crocodiliformes:
Crocodylus niloticus: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/39/Crocodylus_niloticus.jpg
Gavialis gangeticus: http://www.biolib.cz/IMG/GAL/7992.jpg
Alligator sinensis: http://www.brim.ac.cn/brime/bdinchn/photo/29.jpg

As figuras e reconstituição do Sphagesaurus montealtensis foi retirado de:
Andrade MB, Bertini RJ. 2008. A new Sphagesaurus (Mesoeucrocodylia: Notosuchia) from the Upper Cretaceous of Monte Alto City (Bauru Group, Brazil), and a revision of the Sphagesauridae. Hystorical Biology 20:101-136.

Já a foto do Montealtosuchus foi retirada de
Carvalho IS, Vasconcellos FM, Tavares SAS. 2007. Montealtosuchus arrudacamposi, a new peirosaurid crocodile (Mesoeucrocodylia) from the Late Cretaceous Adamantina Formation of Brazil. Zootaxa 1607:35-46.

Sobre o autor:
Felipe Chinaglia Montefeltro é doutorando em Biologia Comparada pela FFCLRP-USP, concentra seus estudos nas relações filogenéticas dos Rhynchosauria e Crocodyliformes. Apesar de ter se envolvido com os estudos dos fósseis desde os primeiros passos da carreira acadêmica (como resultado de uma infância e adolescência "dinonerd"), se interessa em quase qualquer assunto em que a biologia esteja envolvida, especialmente evolução. Lattes.


Um comentário:

  1. nossa...não sabia que esses bichos eram assim desde de o mesozóico! super interessante!!!

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