sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As dores da Biologia Evolutiva


Por Gerardo Furtado




Por que escrevi um livro sobre biologia evolutiva? Ou melhor, por que eu quis escrever um livro sobre biologia evolutiva? Essa é uma pergunta pertinente, e sua resposta, como a resposta para as causas da maior parte dos comportamentos complexos, envolve uma grande diversidade de fatores.
            Fui aluno de Segundo Grau (o então chamado Ensino Médio) na década de oitenta. Naquela época o ensino da biologia era bem pior do que é hoje. Os livros eram de uma qualidade sofrível, beirando o absurdo. Não estou me referindo à sua qualidade gráfica (algo que melhorou bastante nos últimos quinze anos, mas que infelizmente é única virtude de alguns dos livros atuais de biologia, cheios de beleza e carentes de conteúdo), e sim à qualidade de seus textos: tratava-se de uma visão bem ultrapassada de biologia, com conceitos mais adequados ao século XVIII que ao século XX: “a parede celular das células vegetais é uma estrutura morta”, “as plantas fazem fotossíntese para liberar O2 na atmosfera”, “os fungos são os vegetais mais simples”, e assim por diante. Além disso, abundavam informações erradas, que mesmo na época poderiam ser facilmente corrigidas: “a hemoglobina transporta CO2”, “quando uma ligação no ATP é quebrada há liberação de energia”, “a notocorda transforma-se na coluna vertebral”... São tantos os exemplos que uma lista, ainda que resumida, não caberia aqui. Havia alguns livros bons naquela época, mas não eram brasileiros. Lembro-me de que estudávamos pelo livro de biologia geral da Helena Curtis, a famigerada edição da Guanabara de 77, e era uma lufada de ar fresco em nossos pulmões. Também consegui, quando garoto no Segundo Grau, acesso ao Biologia Geral do Claude Villee, aos livros da BSCS (Biological Sciences Curriculum Studies)... até o Baker & Allen era melhor que os livros didáticos que tínhamos na época.
            Em seguida, havia os professores. Sinceramente, não sei como me interessei por biologia, tendo em vista os professores que tive. Se a abordagem dos livros era mais adequada ao século XVIII, não sei se os professores chegavam sequer àquele parâmetro. No primeiro ano estudávamos bioquímica, citologia, histologia. A falta de intimidade com a química e com a matemática, e com as ciências de forma geral, era notória; assim, a biologia era apenas uma série de conceitos a se decorar (e decorar é uma palavra tão bonita, significa “de coração”, que nem merecia figurar aqui). História, filosofia, matemática, química ou física, essas eram matérias onde se usava o raciocínio. Biologia, não. Veio então o segundo ano, com zoologia e botânica. E, junto, veio boa parte da Idade Média: quase todo o curso era baseado na scala naturae. Aprendi que os primeiros animais a terem surgido foram as esponjas, que deram origem aos cnidários, que deram origem aos platelmintos. Os platelmintos, sendo assim, foram os primeiros animais a ter simetria bilateral. Viemos dos répteis, que vieram dos anfíbios, que vieram dos peixes. Mais parece a descrição da genealogia de Abraão no εαγγέλιον κατ Ματθαον. Nas plantas o mesmo aconteceu: as briófitas geraram as pteridófitas, que geraram as gimnospermas, que geraram as angiospermas. Tudo isso era um prenúncio do que nos aguardava um pouco mais à frente.
            E o que nos aguardava era a biologia evolutiva. O resultado, como muitos vivenciaram, não poderia ser mais desastroso, pois a biologia evolutiva é uma ciência muito complexa, além de demasiadamente recente, que requer uma série de habilidades específicas. Deixá-la na mão de professores que ainda ensinam a scala naturae, e que por sinal não têm nem ideia do que seja uma scala naturae, é temerário. Mas é o que ocorre. O resultado é que a biologia evolutiva no Segundo Grau, e alguns anos depois no recém-batizado Ensino Médio, é uma série de conceitos tão incorretos e absurdos que não espanta o elevado grau de analfabetismo científico em nossa sociedade, no que tange especificamente à biologia evolutiva.
Em primeiro lugar, os professores pintavam uma batalha histórica de Lamarck versus Darwin, como se o embate das ideias fosse o embate dos homens. Aprendemos que Lamarck criou os conceitos de transmissão de caracteres adquiridos e do uso das partes, quando na verdade esses eram conceitos comuns à sua época. Entre outras pessoas que usaram esses conceitos está o próprio Darwin, que na “origem das espécies” fala de transmissão de caracteres adquiridos em pelo menos 13 diferentes ocasiões. Assim, o que concluímos é que praticamente nenhum professor de biologia do Segundo Grau leu “a origem das espécies”.
            Aprendemos que evolução é progresso, e que a redução da complexidade é uma involução. Aprendemos que seleção natural e evolução são sinônimos, e que a evolução ocorre sempre por seleção natural. Aprendemos que o mais apto sobrevive, e que todas as características de um organismo foram moldadas pela seleção natural. Aprendemos que o longo pescoço das girafas tem algo a ver com a sua alimentação. Aprendemos que se o meio tiver alguma influência, qualquer que seja, no processo evolutivo, tratar-se-á de um “lamarckismo”. Aprendemos que homólogas são estruturas com mesma origem e diferente função, e que análogas são estruturas com mesma função e diferente origem. Aprendemos que as asas de um morcego e as asas de um passarinho são estruturas homólogas.
            Todos os conceitos apresentados no parágrafo anterior, precedido por esse irritante “aprendemos”, são equivocados. Todos eles. Ainda assim, são repetidos à exaustão. O que me parece, e eu posso estar redondamente enganado, é que para dar aulas sobre evolução os professores não se preocupavam em ter nenhum estudo específico. Egressos da pedagogia, ou da licenciatura em ciências, ou da medicina, farmácia, fisioterapia, ou mesmo (uns poucos) da biologia, eles provavelmente achavam que não seria necessária uma formação específica em biologia evolutiva. Além disso, e aqui vem o mais grave, me parece — com base na minha experiência, id est, nos professores que tive no segundo grau — que muitos deles aprendiam evolução estudando o próprio livro-texto adotado pelo colégio. Essa tendência, devo confessar, eu vejo ainda hoje entre meus colegas professores. Quando pergunto “qual o seu livro preferido” em citologia, costumo ouvir Alberts ou Lodish. Em fisiologia, costumo ouvir Guyton, ou Ganong, ou Levy. Em botânica, quase sempre é o Raven. Em zoologia temos o Barnes, ou o Hickman... mas quando o tema é evolução, costumo ouvir um grilo roçando suas asas. Não há Futuyma, ou Ridley, ou Freeman. Mais uma vez, temos a sensação de que não é necessário estudar biologia evolutiva, de que se trata de um assunto que o professor pode deduzir a partir de seus conhecimentos em outras áreas das ciências biológicas.
            Perto do fim do segundo grau, ainda na multicolorida década de oitenta, comecei a ter acesso a livros que tratavam direta ou indiretamente de evolução. Por sorte, tive um professor que se interessava genuinamente por evolução, e que me indicou “o gene egoísta”. Hoje em dia discordo bastante de muitas das ideias de Dawkins, mas nunca negarei a importância que ele teve para mim, com meus 16 ou 17 anos, não lembro ao certo, para que eu percebesse que havia de fato uma ciência da evolução, uma construção de conceitos lógicos, racionais, com hipóteses e testes matemáticos, com análises estatísticas sérias. Uma série de indagações começou a ser respondida, e uma série de conceitos passou a fazer sentido. Já na faculdade passei a ler Maynard-Smith, que me interessou muito. Dele fui ao Gould, cuja obra é uma fonte praticamente inesgotável de leituras agradáveis. Passei então aos livros-texto propriamente ditos, como o Futuyma, meu preferido, ou o Stearns. Tive o imenso prazer de ler pela primeira vez a “origem das espécies” em uma primeira edição (na verdade um fac-símile da primeira edição, publicado pela Harvard Press), que é bem melhor que a sexta edição, a única — até onde eu saiba — com tradução em português.
            Enfim, vinte e um anos se passaram desde que eu saí do segundo grau. Hoje muita coisa está diferente. A qualidade dos livros escolares em biologia, devo confessar, está bem melhor (incluindo aqui a qualidade gráfica, que é importante para manter a atenção de um aluno adolescente), apesar de muitos erros conceituais injustificáveis se manterem edição após edição. Os professores, em sua maioria, têm uma formação mais adequada à disciplina que lecionam, e parecem ser mais interessados em atualizar suas leituras e seus estudos. Apesar disso, a biologia evolutiva ainda sofre de muitos dos problemas que sofria quando eu era aluno, e em certas escolas parece ainda ser lecionada da mesma forma que então.
            Eu vivi isso na pele. Tentar mudar conceitos equivocados, mas consagrados pelo uso, pode ser uma atividade bem frustrante. Tive meus primeiros estudos de sistemática filogenética no começo da década de noventa, e devo dizer, exercendo esse desagradável esporte que é falar bem de si mesmo, muito antes dos meus colegas professores (hoje em dia, ainda bem, todo mundo tem pelo menos uma noção do que é monofilético, merofilético, apomorfia, nó, grupo-irmão etc). Assim, tentei nadar contra a maré ao tentar explicar a maioria dos conceitos da biologia evolutiva. Tomemos o exemplo da homologia e da analogia. Foram os conceitos com os quais mais tive trabalho nesses últimos quinze anos, por uma razão bastante simples: as definições que eu trazia eram bem diferentes das que estavam nos livros-texto. Uma homologia é uma semelhança por descendência, apenas isso. Tentei explicar que estruturas anatômicas poderiam ser homologias, mas que estruturas comportamentais também poderiam ser. Tentei explicar que o desenvolvimento embrionário não define homologias, pois o flagelo ou o ribossomo de duas bactérias podem ser estruturas homólogas, mesmo sem desenvolvimento embrionário. Tentei explicar que estruturas homólogas podem ter funções iguais ou diferentes, e que estruturas análogas também podem ter funções iguais ou diferentes. Por fim, tentei explicar que as asas de uma andorinha e as asas de um morcego são estruturas análogas, pois o ancestral comum dessas espécies não possuía asas (o que é homólogo aqui são as patas anteriores da andorinha e do morcego. Em ambos, as patas anteriores são asas; contudo, as asas não são uma homologia).
            Em praticamente todos os conceitos da biologia evolutiva tive dificuldades e problemas. Explicar para os alunos que o homem não veio do macaco, nem que o macaco veio do homem (e que um chimpanzé não é um macaco) é uma tarefa hercúlea. Melhor ainda, é uma tarefa sisífica. A scala naturae está bem mais entranhada no ensino médio do que poderíamos supor. Aula após aula, tentei tomar cuidado em dizer que os platelmintos não são nem nunca foram os primeiros animais a possuírem simetria bilateral, ou mesoderme, ou cefalização. Esses foram os ancestrais dos platelmintos, e que por sinais são nossos ancestrais também. Tomei o cuidado de não falar que as briófitas originaram as pteridófitas, o que é mais inadequado ainda quando se sabe que tanto briófitas como pteridófitas são grupos parafiléticos! Tomei o cuidado de nunca falar que Darwin desprezava o uso e desuso das partes e sua transmissão à descendência, uma vez que ele fala sobre isso mais de dez vezes na “origem das espécies”! Tentei tomar cuidado para nunca associar evolução a progresso, para nunca usar o termo involução (que sequer existe em biologia evolutiva), para nunca definir fitness como algo subjetivo e teleológico. Tentei sempre deixar bem claro que a evolução pode não ocorrer, e caso ocorra, pode ocorrer sem que haja seleção.
            Tudo isso, contudo, ia de encontro a boa parte dos textos dos livros do Ensino Médio; pior ainda, ia de encontro a boa parte dos conceitos popularmente disseminados sobre evolução e biologia evolutiva. Aqui chegamos, finalmente, ao momento em que eu resolvi escrever um pequeno livro sobre biologia evolutiva. O que motivou foi esclarecer conceitos, e conceitos bem básicos. O meu objetivo foi tentar construir um fundamento, simples porém firme, para que o aluno possa partir para outras leituras, mais complexas e mais aprofundadas. Se nossos livros-texto tivessem conceitos mais adequados ao século XX e menos adequados ao século XVIII, eu dificilmente teria escrito meu livro. Se a scala naturae fosse apenas uma curiosidade nas aulas de história, e não a base conceitual de quase todas as aulas de biologia no segundo grau e mesmo nas faculdades, eu dificilmente teria escrito meu livro.
            Demorei uns dois meses para escrevê-lo. Na verdade, demorei sete noites, uma para cada conceito, mas espaçadas num intervalo de dois meses. Escrever de forma alguma foi o mais difícil: o mais difícil, como todos aqueles que escrevem sabem, é divulgar sua obra.
            Para início de meus problemas, há a questão de minha “autoridade” no assunto: nunca fiz nenhuma cadeira sobre biologia evolutiva! Por razões que vão além da minha compreensão, os coordenadores da universidade federal onde estudei são contra a criação de uma cadeira de biologia evolutiva, reivindicação constante dos alunos há pelo menos vinte anos. Por isso, mandei os originais para meu grande amigo Felipe Pessoa, doutor em entomologia, que gentilmente sugeriu valiosas modificações e aceitou ser o coautor do livro, dando a ele a autoridade de que carecia.
            Em seguida, veio a publicação em si. Fiz diversas propostas, enviei diversas cópias, e colecionei umas duas dezenas de “nãos”. Resolvi eu mesmo fazer a edição e a publicação do livro, pagando a tiragem de meu próprio bolso, algo que prometi a mim mesmo nunca mais fazer: meu próximo livro será em arquivo digital, e gratuito. Ganhar dinheiro com livros é algo que nós não podemos, ingenuamente, esperar que aconteça; porém, perder dinheiro com livros é algo que não posso me dar ao luxo de fazer novamente. Sem editora ou distribuidora, eu mesmo tive que fazer esse trabalho, e previsivelmente as vendas foram poucas (algumas ordens de grandeza a menos do que os gastos).
Apesar disso, continuo eventualmente enviando propostas para uma ou outra editora, na esperança de que um dia alguma se interesse. Não sei se é uma impressão equivocada, mas me parece, agora que eu passei a pesquisar mais atentamente os livros e o mercado editorial em português (visto que todos os livros de biologia evolutiva que tenho, com a exceção do livro do prof. Dalton Amorim, são de autores estrangeiros), que a publicação de livros de divulgação científica sobre biologia evolutiva tem aumentado nesses últimos anos, e muito disso por causa dos 200 anos do nascimento de Darwin. Devo confessar uma profunda inveja desses autores, por terem conseguido publicar seus livros. Porém, invejas à parte, fico feliz por existirem tais autores, que tentam divulgar uma biologia evolutiva mais séria e coerente para o público comum, contribuindo para esse processo tão importante, denominado alfabetização científica.


Para saber mais:



Lições sobre 7 conceitos fundamentais da biologia evolutiva, 2009, Gerardo Furtado.


Sobre o autor:
Gerardo Furtado é um apaixonado pela biologia em (quase) todas as suas vertentes. Helenista incipiente, bibliófilo confesso, pretende, se um dia conseguir se tornar biólogo, trilhar o fascinante caminho da etologia. Tem um blogue de Ciências, o “Biologia Evolutiva” (visitem!) onde escreve sobre diversos assuntos e fala um pouquinho mais sobre ele e sobre o seu livro...


Fonte da figura: Charles Darwin's evolutionary tree (http://www2.thu.edu.tw/~sysnevo/index.php?page=home&lang=en)

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