terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Nature by Numbers, Cristóbal Vila

O blogue anda passando por um período de "quase hibernação", mas ele continua vivo!
Vamos compartilhar um vídeo muito interessante, que se encontra no site Eterea, uma espécie de portfólio de autoria de Cristóbal Vila. O vídeo que me chamou a atenção é "Nature by Numbers" (A natureza por números), e é o que segue:
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Nature by Numbers from Cristóbal Vila on Vimeo.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Na mídia



Agência Fapesp divulga:

Acesso livre à biodiversidade

3/12/2010
Por Alex Sander Alcântara
Agência FAPESP – O conhecimento produzido no Brasil sobre a sua biodiversidade ganhará mais visibilidade. O motivo é o Portal BHL ScieLO, que disponibiliza com acesso livre milhares de obras, artigos, mapas e documentos históricos sobre a biodiversidade brasileira.
Lançado oficialmente na quarta-feira (1º/12), o serviço é parte do projeto “Digitalização e publicação on-line de uma coleção de obras essenciais em biodiversidade das bibliotecas brasileiras”, conduzido pelo programa SciELO, biblioteca eletrônica virtual de revistas científicas mantida pela FAPESP em convênio com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme).
O projeto conta com a participação do programa Biota-FAPESP, da Biblioteca Virtual do Centro de Documentação e Informação da FAPESP, do Ministério do Meio Ambiente, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo.
De acordo com Abel Packer, coordenador operacional do programa SciELO, a BHL SciELO possibilitará o fortalecimento da pesquisa científica em biodiversidade.
“O Brasil tem uma produção científica de destaque nessa área, mas que hoje assume também uma dimensão política e econômica internacional com todas as discussões sobre mudança climática e preservação de espécies”, disse à Agência FAPESP.
Segundo Packer, o novo portal já reúne volume suficiente de arquivos para atender às demandas de pesquisadores e demais interessados. “Contamos até o momento com cerca de 110 mil registros digitalizados: artigos, mapas e obras de referências históricas da biodiversidade brasileira”, explicou.
O portal integrará a rede global The Biodiversity Heritage Library (BHL), consórcio que reúne os maiores museus de história natural e bibliotecas de botânica no mundo, como a Academy of Natural Sciences e o American Museum of Natural History, nos Estados Unidos, e o Natural History Museum, na Inglaterra.
“A Austrália acabou de entrar e, agora, tanto a BHL Brasil como a BHL China farão parte dessa rede mundial que já conta com cerca de 130 mil obras e mais 32 milhões de páginas digitalizadas”, dise Packer.
No Brasil, a rede será composta por instituições como Biblioteca Nacional, Museu Nacional, Jardim Botânico do Rio Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Butantan, Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), Bireme, Fundação Zoobotânica, Instituto de Botânica do Estado de São Paulo, Museu Paraense Emílio Goeldi e a USP.
“O objetivo é seguir o mesmo modelo da SciELO com a modalidade de acesso aberto com múltiplos sistemas de busca e indicadores bibliométricos, que tem propiciado maior visibilidade à produção científica dos países em desenvolvimento, principalmente os localizados na América Latina e Caribe. A ideia da BHL SciELO é que se estenda também para a América Latina”, contou Packer. O portal também traz notícias da Agência FAPESP e da revistaPesquisa FAPESP.
Produção brasileira
Ao levantar dados sobre a produção científica brasileira na área de zoologia, Rogério Meneghini, coordenador científico do Programa SciELO, disse ter ficado surpreso com a posição do Brasil na produção de artigos na área.
Com base no cruzamento de informações da Web of Science, base de dados da empresa Thomson Reuters, foram produzidos no mundo, entre 2007 e 2008, 23.903 artigos em zoologia. “O que mais chama a atenção é que o Brasil fica na quarta posição com 1.762 artigos, perdendo apenas para os Estados Unidos (7.649), Japão (2.233) e Inglaterra (1.762)”, disse.
Meneghini está concluindo a pesquisa “Projeto para avaliação do impacto de programas brasileiros de ciência e tecnologia”, que tem o apoio da FAPESP por meio da modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular.
Outro destaque do estudo é que, entre as instituições globais de pesquisa na área de zoologia, a USP é a primeira da lista, seguida das academias de ciência da Rússia e da China e da Universidade de Kyoto, no Japão. “Existem áreas em que a produção brasileira está competindo em pé de igualdade. Um exemplo é a zoologia”, disse, destacando a Revista Brasileira de Zoologia.
Tiago Duque Estrada, gestor executivo do Biota-FAPESP na Universidade Estadual de Campinas, falou da experiência do Programa e novos desafios na nova fase do programa. Segundo ele, uma das frentes é disponibilizar dados sobre as pesquisas.
“A linha de base do Biota foi a publicação de sete volumes temáticos e da revista Biota Neotropica, do Atlas e também do Sistema de Informação Ambiental (SinBiota), que tiveram a função de mapear e divulgar o que já está disponível para a sociedade, governos e demais pesquisadores”, disse.
Em pouco mais de dez anos, o Biota contabilizou cerca de 113 mil registros, sendo 12 mil de espécies. “Um dos desafios agora é entender como a biodiversidade produz elementos e componentes químicos que podem ser patenteados e associados à cadeia produtiva existente na sociedade, mas ainda precisamos reunir mais dados”, disse ao falar do Biota Prospecta.
Participaram também do lançamento do portal Sueli Mara Ferreira, diretora do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP, que falou dos desafios do acesso aberto na universidade, Dora Ann Lange Canhos, do Cria, que contou sobre a experiência da Lista de Espécies da Flora do Brasil, e Tiago Duque Estrada, gestor executivo do Biota-FAPESP na Universidade Estadual de Campinas, que falou das publicações do programa, da revista Biota Neotropica e do Sistema de Informação Ambiental (SinBiota).
Acrydium latreillei, inclusa em Delectus animalium articulorum (1830-34), de Johann Baptist von Spix


Imagem 1: floreseversos.blogspot.com

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Por aí...


International Conference Getting Post 2010 Biodiversity Targets Right

O Programa BIOTA/FAPESP, junto com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), decidiu marcar o final do Ano Internacional de Biodiversidade e o começo do Ano Internacional das Florestas organizando a International Conference Getting Post 2010 Biodiversity Targets Right, pretendendo contribuir para o estabelecimento de objetivos novos e efetivamente mensuráveis e cientificamente significantes.

Data: 11 a 15 de dezembro de 2010

Horário: 8h30 às 19h00

Local: Hotel Villa Santo Agostinho - Bragança Paulista/SP

Público alvo: Pesquisadores, estudantes, professores, instituições de ensino e pesquisa, empresas

Coordenação Científica: Prof. Dr. Carlos Alfredo Joly, coordenador do Programa Biota-FAPESP

Contato: faleconosco@biota2010-targets.com.br

Outras informações: www.biota2010-targets.com.br

Aqui e acolá


Acabei de retornar de uma viagem à França. Lá tive, por três meses, a oportunidade de viver a vida cotidiana e simples dos franceses sem todo o glamour das propagandas de agências de turismo e trabalhar num ambiente acadêmico bem diferente (será?) do nosso. Pretendo escrever sobre essa experiência aqui logo menos. Mas antes de ir e mesmo enquanto estive lá, ouvi e li de muitas pessoas como lá é melhor, lá isso e aquilo, porque aqui é tudo ruim, pior... Sou desconfiada por natureza, e antes de conhecer escutava em silêncio. E hoje, checando meus e-mails, recebi uma mensagem com um texto que resgatou um pouco do que penso do que falamos (sem saber direito) do que é tão bom "lá em cima" e "tão pior" aqui no "lado debaixo do Equador".  A França é uma país lindo, passei uma temporada excelente lá e fui bem tratada, sinto falta de muitas coisas, mas a casa da gente, o Brasil, é muito mais do que imaginamos... 
Vamos pensar...

SONHANDO COM O IMPOSSÍVEL
O Neurocientista Miguel Nicolelis, em aula inaugural do segundo semestre de 2009 na Universidade de Brasília (UnB), quebra o protocolo, e em sua surpreendente Aula da Inquietação é ovacionado por um público emocionado.

"Vocês, principalmente os que estudam em universidades públicas, representam os sonhos de realização de milhões de pessoas que jamais poderão vir para cá. São brasileiros que diariamente levantam da cama para trabalhar em empregos que muitos de nós jamais teríamos a coragem de enfrentar no nosso dia-a-dia, para que vocês possam estar aqui.

O sonho que não se converte em realidade inibe o indivíduo que perde a autoconfiança e o pior, causa a inibição coletiva do entorno que vê um sonhador derrotado. Quando um sonhador delirante é derrotado, a mediocridade triunfa e isso é terrível.
Vocês não foram postos aqui pelo resto do Brasil para fazer algo medíocre. Vocês foram postos aqui, receberam esse privilégio de toda a sociedade brasileira, para construir uma nação, e uma nação só se constrói se sonhando com o impossível, sem se esquecer do próximo.

Eu sou de uma geração que tentou fazer o que vocês têm a chance de fazer e fracassou. Nós não conseguimos construir o Brasil que nós queríamos, mas temos agora a oportunidade de testemunhar a tentativa de vôo de vocês.

Na história inteira deste país, vocês são primeira geração que tem verdadeiramente a chance de 
transformar este país num exemplo para a humanidade toda.

Não existe uma expressão que eu abomine mais quando eu venho para o Brasil, quando alguém vira para mim e fala: Nossa, as coisas que fazem lá, no seu laboratório, é coisa de primeiro mundo. Eu paro pra pensar e digo: "Mas que primeiro mundo é esse? De onde vem isso?" Ou então quando ocorre alguma coisa negativa na nossa vida cotidiana e alguém fala: "Isso só acontece no Brasil".

Eu tenho uma boa e uma má notícia para aqueles que usam essa expressão e gostam do primeiro mundo: O primeiro mundo faliu, em todos os sentidos; faliu financeiramente, faliu moralmente, faliu eticamente... E agora vem a boa notícia: O primeiro mundo agora é aqui.

E foi por isso que nos fomos para Natal a seis anos atrás, para tentar realizar um outro sonho impossível, criar um instituto de ponta de neurociência comprometido com a transformação da realidade social daquela região, Hoje ela tem a maior escola de educação cientifica infanto juvenil do Brasil, para 1000 crianças da rede publica de Natal, que são hoje os primeiros brasileiros a terem uma educação publica em tempo integral. 

Elas eram esquecidas, elas faziam parte do pior distrito escolar do país, de acordo com as estatísticas do MEC. As quatro piores escolas do país estavam nessa região, e foi ali que nos selecionamos 1000 crianças da escola publica e trouxemos elas para aprender ciência de ponta. Essas crianças, de 10 a 16 anos, se transformaram em protagonistas do próprio ensino, elas não têm aula teórica, elas freqüentam os melhores laboratórios de ciência e tecnologia que existem no Brasil para crianças, construídos para crianças, e elas hoje dão banho em qualquer criança de qualquer escola privada do estado de São Paulo, e elas se orgulham de serem descendentes dos índios potiguares, os únicos índios tupi guarani que resistiram à colonização portuguesa.

E sabe onde vocês vão encontrar cada um desses 1000 alunos, que vão virar 5000, e que graças a um decreto que vai ser assinado pelo ministro da educação e pelo presidente da republica, vão  se transformar um milhão de crianças pelo Brasil afora, daqui a alguns anos? Aqui na UNB, na USP, na Unicamp, elas vão se transformar em agentes de transformação social, de baixo para cima, não de cima para baixo.

E quando elas chegarem lá, podem acreditar, o prédio ao lado (Senado) vai ser ocupado por outro tipo de gente."


Fonte do texto: http://migre.me/1PDiS
Fonte da figura: poesia.blogtok.com

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Notas desconexas sobre lógica (3)* ou A complexa resposta de Gaia.


Por Renato S. Capellari

Imagine-se grego. Imagine-se também, além de grego, mais de cinco séculos antes de Cristo. Se já isso lhe parecer difícil, não achará pior imaginar-se grego, há mais de dois mil e quinhentos anos, e com uma pergunta virulenta dentro de sua cabeça, que lhe retire o sono. Uma pergunta verdadeiramente complexa. Por exemplo: quais moscas, na sua vasta coleção de moscas, são moscas de uma mesma espécie? Ou então, que virulenta espécie de pergunta é essa, sobre moscas, que lhe retira o sono? Nessa situação, você poderia levantar preces a Hipnos, deus do sono, ou então a Apolo, e buscar por uma resposta no oráculo de Delfos, templo dedicado a esse deus solar da Verdade e da Razão.
O famoso oráculo da cidade de Delfos era conhecido por oferecer respostas verdadeiras a todas as perguntas, por mais complexas que fossem. E aqui podemos entrar num outro assunto interessante: o das perguntas complexas. Em lógica, existe um tipo de raciocínio falacioso chamado de pergunta complexa. Ele consiste na formulação de uma pergunta que contenha, implicitamente, outra questão embutida, a qual pode ser usada para se extrair uma conclusão enganosa a partir da resposta dada. Um investigador inquirindo um suspeito poderia lhe dirigir a seguinte pergunta: “o que você fez com o dinheiro que roubou?”, “nada, senhor...”, “a-há!: então você confessa que roubou o dinheiro!” Apesar de artificial e um pouco extravagante, o diálogo é ilustrativo. Há, em verdade, duas perguntas: “você roubou o dinheiro?” e “o que você fez com o dinheiro roubado?” (que só faz sentido se a resposta à primeira pergunta for positiva). Quando o interlocutor responde à segunda, sua resposta é usada para inferir, falaciosamente, uma resposta à primeira (que ele roubou o dinheiro). Contudo, argumentos falaciosos que utilizam a estrutura da pergunta complexa não costumam ser tão explícitos e, quando usados de maneira tácita, podem ser bastante persuasivos ao ouvinte menos atento. É comum que oradores utilizem uma pergunta retórica com esse sentido: perguntam maliciosamente ao público e, ao responderem eles mesmos de forma falaciosa, dão continuidade ao raciocínio já desvirtuado pela falácia da pergunta complexa. Quando usada com sutileza, a pergunta complexa pode passar de aberração argumentativa a um eficiente truque de convencimento.
"A sacerdotisa de Delfos"


Voltemos, entretanto, ao seu assunto de moscas, pois você, grego há dois mil e quinhentos anos, foi a Delfos, pedir os conselhos do oráculo. Diz-se que a pítia, a sacerdotisa do templo, recebia as respostas num estado delirante, após inalar os vapores que fumegavam de fendas na rocha daquele lugar. As adivinhações e profecias, conta-se, eram recebidas de Gaia, a divindade da Terra, de onde exalavam os inebriantes vapores.  
James Ephraim Lovelock
E aqui, permitam-me novamente, podemos entrar num outro assunto interessante: o da hipótese Gaia. Na cosmogonia grega, Gaia é uma divindade primordial que trouxe harmonia ao caos inicial das eras primitivas. Através de sua força geradora, concebeu vários filhos, dentre eles Urano. Urano foi derrotado por Cronos, que também era filho de Gaia. Cronos foi vencido por Zeus. Zeus que era filho de Cronos. Mas deixemos de lado a tão confusa genealogia olímpica e foquemos em Gaia. Na segunda metade do século passado, o pesquisador James Lovelock propôs a idéia de que o planeta Terra funciona como um super-organismo que regula a si mesmo em direção a um equilíbrio. Essa hipótese foi posteriormente chamada de hipótese Gaia, em referência à deusa Terra que era capaz de, sozinha, gerar a vida. O cerne dessa hipótese reside na proposição geral de que a vida sustenta a vida, isto é, a interação entre os diversos ecossistemas cria, de forma regulada, as próprias condições necessárias à manutenção da vida. Essa regulação seria semelhante ao que é observado em sistemas orgânicos em geral, onde ocorre um equilíbrio homeostático. Diferente da homeostase, porém, que é um equilíbrio de estado (a regulação por homeostase promove o retorno a um estado anterior), o equilíbrio evocado no funcionamento de Gaia é o equilíbrio de processo, também chamado de homeorrese. Nesse caso, o que existe é um retorno ao processo de busca pelo equilíbrio, e não necessariamente o retorno ao estado anterior. Nesse tipo de regulação, abrem-se possibilidades para o estabelecimento de equilíbrios mais bem organizados diante da nova situação, de forma dinâmica. Quando surgiu, e até os dias de hoje, a idéia comoveu tanto pela simpatia como pela antipatia. Os simpáticos às proposições de Lovelock vão desde cientistas até pessoas fora do meio acadêmico que vêem Gaia como a personificação de algo que permeia a natureza, de forma quase espiritualizada. A despeito das leituras tidas como menos científicas da hipótese de Lovelock, há respaldo por parte de pesquisadores, em especial estudiosos do clima, que interpretam as atuais condições climáticas como um sinal responsivo de Gaia frente a fatores principalmente antrópicos (como a queima de combustíveis fósseis e emissão de outros gases poluentes). 
"Medéia"
Os avessos a Gaia, contudo, não são poucos. Uma das mais recentes manifestações contrárias à leitura de Lovelock para o planeta Terra foi feita por Peter Ward, paleontólogo, em seu livro “A hipótese Medéia”. A figura mitológica da feiticeira Medéia é mais bem conhecida pelo seu lado sombrio: casada com Jasão, ela mata os próprios filhos nascidos dessa união como forma de vingança contra o herói. Ward empresta a metáfora de Medéia para descrever a dinâmica da Terra com a biosfera que a povoa: os sistemas vivos são auto-destrutivos, pois seus processos conduzem a condições abióticas que tendem a extinguir a vida. 
Preferindo-se Gaia a Medéia, uma das suposições possíveis seria a de que conservar o meio ambiente tem um valor em si mesmo, intrínseco, uma vez que a preservação dos ecossistemas contribui com a manutenção da vida. Diante disso, a alguns poderia ter soado estranha a recente declaração de Lovelock a esse respeito: “Tentar salvar o planeta é bobagem, porque não podemos fazer isso. Se for salva, a Terra vai se salvar sozinha, que é o que sempre fez. A coisa mais sensível a se fazer é aproveitar a vida enquanto podemos” (informe-se mais sobre isso com este post). E neste ponto eu gostaria de desenvolver um pouco além a estrutura da pergunta complexa. Como regra geral, qualquer falácia se constitui de premissas que não levam à conclusão apresentada. Ou seja, não há encadeamento lógico entre as premissas para se inferir a conclusão proposta (a qual é, portanto, falaciosa). A pergunta complexa não foge a esse esquema, como visto acima, e sua essência pode estar presente em vários raciocínios que não são constituídos por estruturas interrogativas. Acontece, por exemplo, quando uma idéia é negada e, a partir disso, uma idéia oposta a ela é afirmada. Concluir que uma afirmação é verdadeira porque sua oposta é falsa só é válido se os atributos em questão forem genuinamente contrários, isto é, “ou isto, ou aquilo”, nada existindo entre ambos. Por exemplo, à pergunta “esta mulher é gestante?” só existem duas respostas: “sim” e “não” (uma vez que não há nada entre grávido e não-grávido). Portanto, se nego que uma mulher é grávida, ao mesmo tempo afirmo que ela não é gestante. Igualmente, ao negar que uma mulher não é grávida, afirmo que ela é gestante. Isso pode parecer obviedade. Contudo não é sempre óbvio quais atributos são genuinamente contrários (quando são do tipo “ou isto, ou aquilo”), de modo que, ao responder negativamente a uma pergunta, seja logicamente cabível inferir seu contrário. A declaração de Lovelock acima transcrita diz respeito a quê? A sentença “salvar o planeta é possível” é negada. O importante aqui é o que não podemos concluir dessa premissa. Não se infere dessa declaração que, uma vez não sendo possível salvar o planeta, é cabível deixá-la ao descaso (“se salvar sozinha”), ou mesmo permitir que uma crise ambiental aumente em decorrência de “aproveitar a vida enquanto podemos”, esgotando os recursos do planeta. Lovelock não afirma essas coisas. Mas essas são leituras possíveis: falaciosas, mas possíveis. As respostas requerem inspeção quando as perguntas podem carregar mais de um sentido, isto é, quando são complexas. 
Gaia
Gaia, na realidade, pode absolutamente não existir. Entretanto nós existimos (ao menos de alguma forma: mas deixemos isso para depois, pois já lhe sugeri muitas perguntas complexas por ora). Isso significa que deveríamos nos posicionar diante do que acontece no planeta, permeie-o Gaia ou não. A “sensível” sugestão de Lovelock é aproveitar a vida enquanto podemos, isto é, praticar o carpe diem. O carpe diem, entretanto, é uma filosofia surgida com o final do Império Romano, num cenário em que a decadência insuflava nas pessoas o desejo de aproveitar a vida ao máximo, sem se importar com o amanhã (uma vez que pode não haver amanhã). Sentenças como “o funcionamento de Gaia não existe” ou “a Terra vai se salvar sozinha”, assim como muitas outras asserções relacionadas ao tema meio ambiente, não significam que podemos esgotar o planeta, vivendo um carpe diem descontrolado. Não há encadeamento lógico entre essas idéias e uma suposta conclusão – falaciosa – que afirme ser cabível abster-se de posicionamento ou mesmo resignar-se frente ao estado de coisas que há.
A esta altura, se você ainda fosse grego, poderia muito bem achar que estamos falando grego, misturando tanto assunto à sua complexa pergunta. Gaia talvez tivesse lhe indicado uma resposta melhor em sua consulta ao oráculo, através dos vapores inalados pela pítia. De todo modo, seria pertinente que qualquer resposta oferecida fosse inspecionada, uma vez que uma pergunta complexa pode surpreendê-lo a qualquer momento com uma resposta ainda mais complexa: um genuíno presente de grego. 
Uma nova espécie de mosca?

* Este texto é o terceiro de uma série sobre temas de lógica, publicados no IB, o síntese, informativo do centro acadêmico “V de Junho” do Instituto de Biociências da UNESP de Botucatu. As primeiras notas podem ser lidas aqui e as segundas, aqui.

Sobre o autor:
Renato Soares Capellari é biólogo e aluno de doutoramento em entomologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Trabalha diretamente com taxonomia e tem interesse em responder que moscas de sua coleção são de uma mesma espécie. Lattes.

Possibilidades de leitura:
1 – Sobre Gaia: A vingança de Gaia (Intrinseca), de James Lovelock.
2 – Sobre Medeia: leia aqui o primeiro capítulo do livro de Peter Ward, The Medea hypothesis: is life on Earth ultimately self-destructive? (Princeton University Press).
3 – Sobre lógica: Lógica indutiva e probabilidade, de Newton da Costa (Hucitec); Introdução à lógica, de Irving Copi (Mestre Jou).



Legendas das figuras:
[1] "A sacerdotisa de Delfos", de John Collier.

[2] James Ephraim Lovelock (1919 – atual)

[3] "Medéia", de Paul Cézanne

[4] Gaia

[5] Uma nova espécie de mosca?
Fonte: o autor


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Por aí...



International Symposium on Phylogeography (8 e 9/11/2010)

O simpósio tem o objetivo de discutir os avanços e desafios na área da Filogeografia bem como demonstrar e promover a Filogeografia como área de interface com outras áreas do conhecimento, no contexto dos estudos em biodiversidade. A reunião possibilitará a interação entre pesquisadores interessados nesta área, integrando os grupos de pesquisa brasileiros na comunidade internacional e servindo de plataforma para discutir questões relevantes para a pesquisa filogeográfica brasileira.
Data: 8 e 9 de novembro de 2010
Horário: das 8h30 às 18h15
Local:Auditório da FEA 5 – USP
Faculdade de Economia e Administração - USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 908
Estacionamento:Bolsão da FEA

Evento isento de taxa de inscrição.

As palestras serão proferidas em inglês, português e espanhol,com tradução para português e inglês. 

Amazônia: sob a luz da lua e o canto do capitão-da-mata!


Por Sarah S. Oliveira

Sou bióloga, doutoranda, interessada em evolução, trabalhos de campo e insetos. Ao longo de minha formação acadêmica obtive experiência de campo em áreas de Cerrado e floresta Atlântica, até então a Amazônia era uma realidade distante. Mas, os acasos sucessivos que regem a vida de todos nós, deixaram saudades de uma Amazônia que pretendo voltar sempre. 





Minha primeira experiência (resultado de um convite para participar de uma expedição de um mês ao alto Rio Negro, em julho de 2009) foi um tanto inusitada, por dois motivos principais: a expectativa e a decepção.
Embarquei em Campinas sorridente, muitíssimo feliz e ansiosa para conhecer esse universo chamado Amazônia. Digo universo porque não basta saber que é a maior floresta tropical do planeta, com expressiva biodiversidade associada, formada por árvores de grande porte em um solo muitíssimo pobre altamente dependente dos nutrientes resultantes da decomposição da serrapilheira. Universo porque não há livro didático e noticiário social ou científico que transmita a quem não a conhece a noção espacial exata do que é essa imensa floresta! Em um vôo de 3h40 até Manaus, duas horas se dão sobre floresta, mata nativa intocada, e isso é apenas a porção leste da floresta, muito menor do que toda a região entre Manaus e o oeste da América do Sul (aproximadamente 2400Km). O triste é saber que voamos boa parte do tempo (aproximadamente 40 minutos) sobre área desmatada, hoje plantação de soja e algodão no Mato Grosso, e que outrora essa paisagem seria outra. Eu não sou contra ocupações humanas e sei que as plantações permitem que as pessoas comam e se vistam. O problema é como se dá boa parte dessas ocupações. Hoje se sabe que a floresta, explorada de forma adequada (p.ex. manejo sustentável da pesca, agricultura e pecuária, produção de açaí, castanha-do-pará e madeira), permite conciliar ocupação humana e áreas não desmatadas. Mas essa informação não é levada em conta na maioria das vezes, infelizmente.







 A decepção, apesar do negativismo que cerca a palavra, transformou-se em um grande aprendizado humanitário. Depois de quatro dias subindo o Rio Negro em direção aos limites dos estados do Amazonas e Roraima, sob escolta de garças e botos, nosso barco naufragou nas proximidades da Comunidade São José, Igarapé do Malalahah. Felizmente nenhum ferido e poucas perdas materiais, mas não conseguimos coletar. Passamos um dia no salão de festas de uma comunidade ribeirinha, cercados pela curiosidade das crianças, pelas “guloseimas” calóricas retiradas do naufrágio, bebendo água do igarapé e comendo mandioca cozida preparada pelas mães da comunidade. Os homens não estavam presentes, exceto os mais idosos. Ficam dias na mata recolhendo piaçava (ou piaçaba), fibras utilizadas para produzir vassouras. Periodicamente voltam à comunidade para rever suas famílias e comercializar os enormes fardos de fibras. Esse dinheiro é utilizado para comprar gasolina para o gerador (utilizado para iluminar a comunidade poucas horas à noite) e mantimentos industrializados. As crianças recebem atendimento médico periódico, são alfabetizadas na escola da comunidade e muito curiosas em relação ao restante do mundo, já que há uma televisão comunitária em que assistem o Jornal Nacional e a novela das “oito” todos os dias. Depois disso as luzes se apagam e a lua cumpre o seu papel.



 Posso dizer que a experiência de dormir ao relento, sob a luz da lua, ao som das águas negras e do capitão-da-mata (uma ave que tem um canto muito alto e característico) nos faz repensar profundamente nosso lugar na natureza e a maneira desleal com que o homem tem interagido com o meio ambiente.
No dia seguinte fomos resgatados por uma embarcação vinda de Barcelos, retornamos à Manaus e, por terra, fomos coletar no município de Presidente Figueiredo.
A comunidade de Figueiredo, ao contrário da que conheci no alto Rio Negro, tem energia elétrica. Mas me surpreendi ao saber que a luz na região data de 2006 (programa “Luz para todos”), em uma comunidade a apenas 70Km de asfalto de Manaus. A melhor palavra para explicar isso, a meu ver, é descaso das autoridades públicas. A mandioca e a caça são a base da alimentação e o dinheiro do “Bolsa família” é gasto com mantimentos como arroz e feijão. Todos vão à escola, inclusive os pais.
É muito interessante ver pai, mãe e filhos caminhando no meio da tarde em direção à escola e voltando tarde da noite. Como viajamos para coletar insetos, com armadilhas espalhadas ao entorno da comunidade e nas trilhas, corriqueiramente eles param nas armadilhas, perguntam, aprendem, e se perdem novamente na escuridão.



Diferente, mas interessante é ver a mata transpirar por horas após uma chuva efêmera e continuar “chovendo” em seu interior mesmo que a chuva já tenha cessado por completo. O calor e a umidade são indescritíveis, a sensação é de como se tivéssemos tomado muita chuva enquanto caminhando sob o sol por horas .... E horas ... E horas .... mesmo que não tivesse chovido.






As árvores geralmente são muito altas, com troncos finos e roliços (estioladas), galhadas apenas nas copas, de forma que a paisagem torna-se bastante repetitiva, explicando a grande quantidade de episódios em que muitos viajantes inexperientes se perdem. Mas a mata em si não é difícil de ser adentrada. O solo é regular facilitando o acesso, muito diferente dos remanescentes de Floresta Atlântica, em que o terreno é geralmente íngreme, com predomínio de arbustos. Nada melhor que um mateiro (pessoa da região com um grande conhecimento da mata local) para nos levar aos diferentes ambientes dentro da mata (campinas, cachoeiras, igarapés, bromélias aos montes no chão, etc.) e ensinar nomes populares da natureza ao redor. É interessante notar que a paisagem não é a mesma ao longo de toda a floresta, e que a mesma não é composta apenas por áreas planas e rios calmos. Particularmente gostei do “mulateiro”, uma árvore com tronco vermelho vivo, fácil de reconhecer de longe, e da famigerada castanha-do-Pará ou castanha-do-Brasil, árvore imponente com seus ouriços repletos de castanhas.

 Eu esperava caminhar pela mata e ver muitos insetos voando, pássaros, cobras, mamíferos. Mas isso é uma grande ilusão. O mateiro reconhece pegadas, mas para ver uma borboleta voando, só depois de ficarmos parados e em silêncio por um bom tempo. Isso não significa que a floresta não é rica em termos de biodiversidade. Pelo contrário, indica que qualquer mínima alteração é perceptível pelos animais e que os mesmos se escondem rapidamente. Os fatores sazonais também influenciam este tipo de observação.






Durante as coletas, o panorama geral é bem diferente. O material coletado por meio dos diferentes tipos de armadilhas é muitíssimo variável, inusitado, colorido e vistoso. Muitas espécies encontradas certamente são novas, já que a região é pouco estudada, mas isso só é confirmado após exaustivos estudos realizados por especialistas e publicados em artigos científicos.
Este ano voltei à Manaus (em junho de 2010). Dessa vez sem naufrágio coletamos ao longo das matas dos afluentes ao norte do Rio Negro. Exploramos os Rios Aracá e Padauari. As impressões dessas águas escuras ficam para uma próxima postagem.










Sobre a autora:

Sarah Siqueira de Oliveira é bióloga, estudante de doutorado, interessada em evolução, trabalhos de campo, insetos, sistemática filogenética, biogeografia, educação e ensino de ciências. Escreve ensaios sobre diversos temas em biologia e divulga eventos de interesse geral no blog Forma, Tempo e Espaço. Lattes.

Fotos de Sarah Oliveira, Chico Felipe e Josenir Câmara.







terça-feira, 21 de setembro de 2010

1 ano!!!




1 ano!!!

Hoje faz um ano que meu sobrinho* nasceu e que colocamos o blogue no ar! Mas foi apenas depois de outros seis meses que começamos a postar os textos! Mas foi bem antes de setembro que começamos a discutir o projeto de um espaço onde divulgaríamos a nossa ciência feita dentro dos muros dos museus e universidades!
 Parece um projeto simples, mas não é. Somos alunos de pós-graduação, com agendas e cabeças cheias... De sonhos, idéias, preocupações, projetos (de vida e de trabalho), relatórios... E nessa bagunça toda tentamos gerenciar da melhor maneira possível esse espaço. Pensando em temas, escrevendo, convidando amigos, corrigindo textos... Nem sempre as coisas saem como planejado nem no tempo que gostaríamos, mas o projeto continua, levamos ele muito a sério e não vamos desistir! J
 Algumas discussões já foram iniciadas, idéias foram apresentadas, relatos, curiosidades e alguns eventos. Um pouco do “mundo da Ciência” sendo exposto por quem vive nele. Ainda muita ciência “biológica”, mas também (como parte dos nossos planos) em breve mais Ciência num sentido amplo e abrangente.
 Desse período podemos dizer que aprendemos muito. Não é tão simples quanto parece escrever e corrigir textos de divulgação científica. Houve momentos de frustração, de bloqueio, mas após tudo isso muito aprendizado e vontade de querer fazer mais. Escrever artigos científicos requer seriedade e bastante rigor, mas como isso fica simples quando nos deparamos com o desafio de escrever para um público não homogêneo e enorme!
 Esperamos que nossos leitores e colaboradores sintam-se um pouquinho como nós! Aprendendo mais e mais!
 Parabéns para nós e que os anos se multipliquem e que acompanhemos a “evolução” do espaço, dos textos e do público!

 



Obrigados!

Lívia, Pedro, Rafaela* e Simeão.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As dores da Biologia Evolutiva


Por Gerardo Furtado




Por que escrevi um livro sobre biologia evolutiva? Ou melhor, por que eu quis escrever um livro sobre biologia evolutiva? Essa é uma pergunta pertinente, e sua resposta, como a resposta para as causas da maior parte dos comportamentos complexos, envolve uma grande diversidade de fatores.
            Fui aluno de Segundo Grau (o então chamado Ensino Médio) na década de oitenta. Naquela época o ensino da biologia era bem pior do que é hoje. Os livros eram de uma qualidade sofrível, beirando o absurdo. Não estou me referindo à sua qualidade gráfica (algo que melhorou bastante nos últimos quinze anos, mas que infelizmente é única virtude de alguns dos livros atuais de biologia, cheios de beleza e carentes de conteúdo), e sim à qualidade de seus textos: tratava-se de uma visão bem ultrapassada de biologia, com conceitos mais adequados ao século XVIII que ao século XX: “a parede celular das células vegetais é uma estrutura morta”, “as plantas fazem fotossíntese para liberar O2 na atmosfera”, “os fungos são os vegetais mais simples”, e assim por diante. Além disso, abundavam informações erradas, que mesmo na época poderiam ser facilmente corrigidas: “a hemoglobina transporta CO2”, “quando uma ligação no ATP é quebrada há liberação de energia”, “a notocorda transforma-se na coluna vertebral”... São tantos os exemplos que uma lista, ainda que resumida, não caberia aqui. Havia alguns livros bons naquela época, mas não eram brasileiros. Lembro-me de que estudávamos pelo livro de biologia geral da Helena Curtis, a famigerada edição da Guanabara de 77, e era uma lufada de ar fresco em nossos pulmões. Também consegui, quando garoto no Segundo Grau, acesso ao Biologia Geral do Claude Villee, aos livros da BSCS (Biological Sciences Curriculum Studies)... até o Baker & Allen era melhor que os livros didáticos que tínhamos na época.
            Em seguida, havia os professores. Sinceramente, não sei como me interessei por biologia, tendo em vista os professores que tive. Se a abordagem dos livros era mais adequada ao século XVIII, não sei se os professores chegavam sequer àquele parâmetro. No primeiro ano estudávamos bioquímica, citologia, histologia. A falta de intimidade com a química e com a matemática, e com as ciências de forma geral, era notória; assim, a biologia era apenas uma série de conceitos a se decorar (e decorar é uma palavra tão bonita, significa “de coração”, que nem merecia figurar aqui). História, filosofia, matemática, química ou física, essas eram matérias onde se usava o raciocínio. Biologia, não. Veio então o segundo ano, com zoologia e botânica. E, junto, veio boa parte da Idade Média: quase todo o curso era baseado na scala naturae. Aprendi que os primeiros animais a terem surgido foram as esponjas, que deram origem aos cnidários, que deram origem aos platelmintos. Os platelmintos, sendo assim, foram os primeiros animais a ter simetria bilateral. Viemos dos répteis, que vieram dos anfíbios, que vieram dos peixes. Mais parece a descrição da genealogia de Abraão no εαγγέλιον κατ Ματθαον. Nas plantas o mesmo aconteceu: as briófitas geraram as pteridófitas, que geraram as gimnospermas, que geraram as angiospermas. Tudo isso era um prenúncio do que nos aguardava um pouco mais à frente.
            E o que nos aguardava era a biologia evolutiva. O resultado, como muitos vivenciaram, não poderia ser mais desastroso, pois a biologia evolutiva é uma ciência muito complexa, além de demasiadamente recente, que requer uma série de habilidades específicas. Deixá-la na mão de professores que ainda ensinam a scala naturae, e que por sinal não têm nem ideia do que seja uma scala naturae, é temerário. Mas é o que ocorre. O resultado é que a biologia evolutiva no Segundo Grau, e alguns anos depois no recém-batizado Ensino Médio, é uma série de conceitos tão incorretos e absurdos que não espanta o elevado grau de analfabetismo científico em nossa sociedade, no que tange especificamente à biologia evolutiva.
Em primeiro lugar, os professores pintavam uma batalha histórica de Lamarck versus Darwin, como se o embate das ideias fosse o embate dos homens. Aprendemos que Lamarck criou os conceitos de transmissão de caracteres adquiridos e do uso das partes, quando na verdade esses eram conceitos comuns à sua época. Entre outras pessoas que usaram esses conceitos está o próprio Darwin, que na “origem das espécies” fala de transmissão de caracteres adquiridos em pelo menos 13 diferentes ocasiões. Assim, o que concluímos é que praticamente nenhum professor de biologia do Segundo Grau leu “a origem das espécies”.
            Aprendemos que evolução é progresso, e que a redução da complexidade é uma involução. Aprendemos que seleção natural e evolução são sinônimos, e que a evolução ocorre sempre por seleção natural. Aprendemos que o mais apto sobrevive, e que todas as características de um organismo foram moldadas pela seleção natural. Aprendemos que o longo pescoço das girafas tem algo a ver com a sua alimentação. Aprendemos que se o meio tiver alguma influência, qualquer que seja, no processo evolutivo, tratar-se-á de um “lamarckismo”. Aprendemos que homólogas são estruturas com mesma origem e diferente função, e que análogas são estruturas com mesma função e diferente origem. Aprendemos que as asas de um morcego e as asas de um passarinho são estruturas homólogas.
            Todos os conceitos apresentados no parágrafo anterior, precedido por esse irritante “aprendemos”, são equivocados. Todos eles. Ainda assim, são repetidos à exaustão. O que me parece, e eu posso estar redondamente enganado, é que para dar aulas sobre evolução os professores não se preocupavam em ter nenhum estudo específico. Egressos da pedagogia, ou da licenciatura em ciências, ou da medicina, farmácia, fisioterapia, ou mesmo (uns poucos) da biologia, eles provavelmente achavam que não seria necessária uma formação específica em biologia evolutiva. Além disso, e aqui vem o mais grave, me parece — com base na minha experiência, id est, nos professores que tive no segundo grau — que muitos deles aprendiam evolução estudando o próprio livro-texto adotado pelo colégio. Essa tendência, devo confessar, eu vejo ainda hoje entre meus colegas professores. Quando pergunto “qual o seu livro preferido” em citologia, costumo ouvir Alberts ou Lodish. Em fisiologia, costumo ouvir Guyton, ou Ganong, ou Levy. Em botânica, quase sempre é o Raven. Em zoologia temos o Barnes, ou o Hickman... mas quando o tema é evolução, costumo ouvir um grilo roçando suas asas. Não há Futuyma, ou Ridley, ou Freeman. Mais uma vez, temos a sensação de que não é necessário estudar biologia evolutiva, de que se trata de um assunto que o professor pode deduzir a partir de seus conhecimentos em outras áreas das ciências biológicas.
            Perto do fim do segundo grau, ainda na multicolorida década de oitenta, comecei a ter acesso a livros que tratavam direta ou indiretamente de evolução. Por sorte, tive um professor que se interessava genuinamente por evolução, e que me indicou “o gene egoísta”. Hoje em dia discordo bastante de muitas das ideias de Dawkins, mas nunca negarei a importância que ele teve para mim, com meus 16 ou 17 anos, não lembro ao certo, para que eu percebesse que havia de fato uma ciência da evolução, uma construção de conceitos lógicos, racionais, com hipóteses e testes matemáticos, com análises estatísticas sérias. Uma série de indagações começou a ser respondida, e uma série de conceitos passou a fazer sentido. Já na faculdade passei a ler Maynard-Smith, que me interessou muito. Dele fui ao Gould, cuja obra é uma fonte praticamente inesgotável de leituras agradáveis. Passei então aos livros-texto propriamente ditos, como o Futuyma, meu preferido, ou o Stearns. Tive o imenso prazer de ler pela primeira vez a “origem das espécies” em uma primeira edição (na verdade um fac-símile da primeira edição, publicado pela Harvard Press), que é bem melhor que a sexta edição, a única — até onde eu saiba — com tradução em português.
            Enfim, vinte e um anos se passaram desde que eu saí do segundo grau. Hoje muita coisa está diferente. A qualidade dos livros escolares em biologia, devo confessar, está bem melhor (incluindo aqui a qualidade gráfica, que é importante para manter a atenção de um aluno adolescente), apesar de muitos erros conceituais injustificáveis se manterem edição após edição. Os professores, em sua maioria, têm uma formação mais adequada à disciplina que lecionam, e parecem ser mais interessados em atualizar suas leituras e seus estudos. Apesar disso, a biologia evolutiva ainda sofre de muitos dos problemas que sofria quando eu era aluno, e em certas escolas parece ainda ser lecionada da mesma forma que então.
            Eu vivi isso na pele. Tentar mudar conceitos equivocados, mas consagrados pelo uso, pode ser uma atividade bem frustrante. Tive meus primeiros estudos de sistemática filogenética no começo da década de noventa, e devo dizer, exercendo esse desagradável esporte que é falar bem de si mesmo, muito antes dos meus colegas professores (hoje em dia, ainda bem, todo mundo tem pelo menos uma noção do que é monofilético, merofilético, apomorfia, nó, grupo-irmão etc). Assim, tentei nadar contra a maré ao tentar explicar a maioria dos conceitos da biologia evolutiva. Tomemos o exemplo da homologia e da analogia. Foram os conceitos com os quais mais tive trabalho nesses últimos quinze anos, por uma razão bastante simples: as definições que eu trazia eram bem diferentes das que estavam nos livros-texto. Uma homologia é uma semelhança por descendência, apenas isso. Tentei explicar que estruturas anatômicas poderiam ser homologias, mas que estruturas comportamentais também poderiam ser. Tentei explicar que o desenvolvimento embrionário não define homologias, pois o flagelo ou o ribossomo de duas bactérias podem ser estruturas homólogas, mesmo sem desenvolvimento embrionário. Tentei explicar que estruturas homólogas podem ter funções iguais ou diferentes, e que estruturas análogas também podem ter funções iguais ou diferentes. Por fim, tentei explicar que as asas de uma andorinha e as asas de um morcego são estruturas análogas, pois o ancestral comum dessas espécies não possuía asas (o que é homólogo aqui são as patas anteriores da andorinha e do morcego. Em ambos, as patas anteriores são asas; contudo, as asas não são uma homologia).
            Em praticamente todos os conceitos da biologia evolutiva tive dificuldades e problemas. Explicar para os alunos que o homem não veio do macaco, nem que o macaco veio do homem (e que um chimpanzé não é um macaco) é uma tarefa hercúlea. Melhor ainda, é uma tarefa sisífica. A scala naturae está bem mais entranhada no ensino médio do que poderíamos supor. Aula após aula, tentei tomar cuidado em dizer que os platelmintos não são nem nunca foram os primeiros animais a possuírem simetria bilateral, ou mesoderme, ou cefalização. Esses foram os ancestrais dos platelmintos, e que por sinais são nossos ancestrais também. Tomei o cuidado de não falar que as briófitas originaram as pteridófitas, o que é mais inadequado ainda quando se sabe que tanto briófitas como pteridófitas são grupos parafiléticos! Tomei o cuidado de nunca falar que Darwin desprezava o uso e desuso das partes e sua transmissão à descendência, uma vez que ele fala sobre isso mais de dez vezes na “origem das espécies”! Tentei tomar cuidado para nunca associar evolução a progresso, para nunca usar o termo involução (que sequer existe em biologia evolutiva), para nunca definir fitness como algo subjetivo e teleológico. Tentei sempre deixar bem claro que a evolução pode não ocorrer, e caso ocorra, pode ocorrer sem que haja seleção.
            Tudo isso, contudo, ia de encontro a boa parte dos textos dos livros do Ensino Médio; pior ainda, ia de encontro a boa parte dos conceitos popularmente disseminados sobre evolução e biologia evolutiva. Aqui chegamos, finalmente, ao momento em que eu resolvi escrever um pequeno livro sobre biologia evolutiva. O que motivou foi esclarecer conceitos, e conceitos bem básicos. O meu objetivo foi tentar construir um fundamento, simples porém firme, para que o aluno possa partir para outras leituras, mais complexas e mais aprofundadas. Se nossos livros-texto tivessem conceitos mais adequados ao século XX e menos adequados ao século XVIII, eu dificilmente teria escrito meu livro. Se a scala naturae fosse apenas uma curiosidade nas aulas de história, e não a base conceitual de quase todas as aulas de biologia no segundo grau e mesmo nas faculdades, eu dificilmente teria escrito meu livro.
            Demorei uns dois meses para escrevê-lo. Na verdade, demorei sete noites, uma para cada conceito, mas espaçadas num intervalo de dois meses. Escrever de forma alguma foi o mais difícil: o mais difícil, como todos aqueles que escrevem sabem, é divulgar sua obra.
            Para início de meus problemas, há a questão de minha “autoridade” no assunto: nunca fiz nenhuma cadeira sobre biologia evolutiva! Por razões que vão além da minha compreensão, os coordenadores da universidade federal onde estudei são contra a criação de uma cadeira de biologia evolutiva, reivindicação constante dos alunos há pelo menos vinte anos. Por isso, mandei os originais para meu grande amigo Felipe Pessoa, doutor em entomologia, que gentilmente sugeriu valiosas modificações e aceitou ser o coautor do livro, dando a ele a autoridade de que carecia.
            Em seguida, veio a publicação em si. Fiz diversas propostas, enviei diversas cópias, e colecionei umas duas dezenas de “nãos”. Resolvi eu mesmo fazer a edição e a publicação do livro, pagando a tiragem de meu próprio bolso, algo que prometi a mim mesmo nunca mais fazer: meu próximo livro será em arquivo digital, e gratuito. Ganhar dinheiro com livros é algo que nós não podemos, ingenuamente, esperar que aconteça; porém, perder dinheiro com livros é algo que não posso me dar ao luxo de fazer novamente. Sem editora ou distribuidora, eu mesmo tive que fazer esse trabalho, e previsivelmente as vendas foram poucas (algumas ordens de grandeza a menos do que os gastos).
Apesar disso, continuo eventualmente enviando propostas para uma ou outra editora, na esperança de que um dia alguma se interesse. Não sei se é uma impressão equivocada, mas me parece, agora que eu passei a pesquisar mais atentamente os livros e o mercado editorial em português (visto que todos os livros de biologia evolutiva que tenho, com a exceção do livro do prof. Dalton Amorim, são de autores estrangeiros), que a publicação de livros de divulgação científica sobre biologia evolutiva tem aumentado nesses últimos anos, e muito disso por causa dos 200 anos do nascimento de Darwin. Devo confessar uma profunda inveja desses autores, por terem conseguido publicar seus livros. Porém, invejas à parte, fico feliz por existirem tais autores, que tentam divulgar uma biologia evolutiva mais séria e coerente para o público comum, contribuindo para esse processo tão importante, denominado alfabetização científica.


Para saber mais:



Lições sobre 7 conceitos fundamentais da biologia evolutiva, 2009, Gerardo Furtado.


Sobre o autor:
Gerardo Furtado é um apaixonado pela biologia em (quase) todas as suas vertentes. Helenista incipiente, bibliófilo confesso, pretende, se um dia conseguir se tornar biólogo, trilhar o fascinante caminho da etologia. Tem um blogue de Ciências, o “Biologia Evolutiva” (visitem!) onde escreve sobre diversos assuntos e fala um pouquinho mais sobre ele e sobre o seu livro...


Fonte da figura: Charles Darwin's evolutionary tree (http://www2.thu.edu.tw/~sysnevo/index.php?page=home&lang=en)