Por Lívia Rodrigues Pinheiro
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Imagine que os taxonomistas entrassem em greve.
À primeira vista pode parecer tolo, talvez risível. O que pretenderiam os taxônomos com uma greve? O que esperariam obter com atitude tão insólita? Afinal, eles não fazem nenhuma diferença prática no cotidiano, e sequer existem em número suficiente para uma marcha de protesto. Não haveria caos urbano devido à sua paralisação. Os ônibus circulariam normalmente, as pessoas iriam de casa para o trabalho e de volta para casa, exatamente da mesma maneira. A mídia não noticiaria algo tão esdrúxulo, a não ser, talvez, em uma seção especialmente designada para notícias nonsense.
Então, por que convidar o leitor a imaginar tal despautério? As intenções são duas: mostrar a estupidez da dicotomia que se criou entre ciências de base versus ciências aplicadas, com todas as regalias concedidas a estas últimas, e dissertar um pouco mais sobre a natureza da taxonomia e as consequências dela para a biologia como um todo.
Ciências de base, também chamadas fundamentais, ou, ainda, ciências puras, são frequentemente menosprezadas perante as ciências aplicadas. Em uma análise rápida, não é algo difícil de se entender – um químico que trabalha diretamente no melhoramento da produção de elementos úteis à indústria apresenta um resultado rápido e direto do que foi investido em sua pesquisa. Outro que esteja interessado na estrutura molecular de um grupo específico de proteínas encontradas somente em águas-vivas terá muito mais dificuldade em demonstrar à sociedade por que ela deveria continuar subsidiando sua pesquisa. Da mesma forma, um biólogo que trabalha na área médica possui maior facilidade de financiamento e maior prestígio social do que alguém que tem a excêntrica idéia de tentar obter seu sustento investigando, por exemplo, relações de parentesco evolutivo entre grupos de mariposas.
Mas pense em um triângulo equilátero. Ciências de base não têm este nome à toa. Elas estão lá embaixo, sustentando todas as outras que compõem sua grande área (como física ou biologia). Seus resultados geralmente não têm nenhuma aplicação prática imediata, e não é de admirar que, em uma sociedade que preza, acima de tudo, pela praticidade e rapidez, elas não estejam em boa conta com quem as sustenta.
É aí que entra a greve dos taxonomistas. Ela poderia muito bem ser a greve dos cosmologistas, astrofísicos, químicos nucleares, geólogos planetários, para não falar da quase totalidade dos pesquisadores concentrados nas denominadas ciências humanas. Fosse a ciência constituída e dirigida somente para aplicações práticas, em pouco tempo ela morreria de inanição.
Não pretendo insinuar que as ciências aplicadas são destituídas de importância; mas sua importância não deveria ser entusiasticamente celebrada, em detrimento de todas as pesquisas de resultado não prático e imediato que foram fundamentais para que se conseguisse chegar à sua aplicação. Nenhuma pesquisa parte do zero. Mas somente as que apontam soluções diretas para problemas do agora têm alguma chance de ganhar um prêmio Nobel (que, aliás, não possui premiação em biologia, somente em “Medicina e fisiologia”, o que só ajuda a ilustrar a questão).
Mas, se o problema diz respeito a todas as ciências básicas, talvez o leitor se pergunte por que de novo a taxonomia. Não é difícil deduzir que é porque esta é a minha área, mas há duas outras razões.
A taxonomia é peculiar por ser, literal e inexoravelmente, a base de toda a biologia. É possível estudar a bioquímica sem se preocupar com biogeografia; ecologia sem genética; morfologia sem biologia molecular. Mas não é possível fazer nada disso sem saber do que se está falando. A taxonomia provê a significação que permite todos os demais estudos em biologia, especialmente os mais interessantes de todos, os de biologia comparada. Sem ela, nenhum biólogo sequer saberia qual organismo está estudando, quanto mais ter subsídios para se guiar, por exemplo, na procura de uma molécula de interesse médico que sabidamente só existe em uma espécie muito rara.
Uma ciência em crise por dificuldades de financiamento e desprestígio pode, a qualquer momento, fortalecer-se e continuar de onde parou, com consequências variáveis. Para a taxonomia (e, também, a etnologia e a linguística de grupos humanos em vias de extinção) não existe esta possibilidade. A hora é agora, ou não será mais. A diferença é que a perda nas ciências humanas citadas resume-se a algumas dezenas ou centenas de grupos humanos dos quais jamais saberemos muita coisa. Eventualmente é até possível recuperar elementos importantes de algumas culturas por meio da arqueologia ou do estudo de documentos históricos. Para a taxonomia esta é outra possibilidade que não existe.
A extinção de etnias acarreta em perda da riqueza cultural e linguística humana. A extinção de espécies, na velocidade que calculamos hoje, costuma trazer outras consequências além da lastimável perda da biodiversidade. Os efeitos econômicos da destruição de habitats já estão se fazendo presentes, e uma das maiores dificuldades na implementação de políticas de conservação (deixando de lado o desinteresse político, naturalmente) é o simples fato de que não sabemos o que existe. Não é possível planejar estratégias de conservação se não se sabe a existência, quanto mais a ocorrência geográfica e o grau de vulnerabilidade das espécies. É claro que a taxonomia sozinha jamais irá resolver estes problemas a tempo. Mas investimentos e valorização da área – fundamentais para que haja interessados a trabalhar nela – seriam um ótimo começo.
Para saber mais:
Lopes, O. U. 1991. Pesquisa básica versus pesquisa aplicada. Estududos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 13. Disponível aqui.
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Righetti, S. 2005. Falta investimento em pesquisa e preservação no Brasil. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 57, n. 1. Disponível aqui.
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