quarta-feira, 22 de junho de 2011

Uma nova espécie de predador triássico do Rio Grande do Sul


Por Marco Aurélio de Gallo França

O Achado:
No início do ano de 2001, paleontólogos do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (MCN/FZB-RS) - Dr. Jorge Ferigolo, Dra. Ana Maria Ribeiro e Dr. Ricardo Negri - com o apoio financeiro do projeto Pró-Guaíba/BID, saíram em uma viagem de campo atrás de sítios paleontológicos gaúchos que afloram rochas triássicas (período entre 245 e 205 milhões de anos atrás). Dentro da rota planejada para a viagem estava o afloramento informalmente denominado de “posto”, pois o mesmo se encontra na entrada da cidade de Dona Francisca, região central do Rio Grande do Sul, logo atrás de um posto de gasolina que beira a estrada.
FIGURA 1- Mapa do Brasil destacando o Estado do Rio Grande de Sul e a Região da Quarta colônia (em azul), com uma foto aérea da entrada da cidade de Dona Francisca aonde o fóssil foi encontrado (Localidade Posto de Gasolina).

Após algum tempo de caminhada pelo afloramento, de levanta e agacha pra ver se o que tem ali no chão é rocha, lixo ou fóssil, o Jorge encontra alguma coisa que parecia interessante: “Ana, achei uma coisa aqui que parece um crânio!!!”. Por ele ser um tanto brincalhão, ela duvidou logo de cara. Mas após ir até o local, ambos confirmaram se tratar de um crânio, e não pequeno (cerca de 30 cm de comprimento). Aí começava o que todo paleontólogo faz quando encontra alguma coisa: escavar em volta pra ver se tem mais fóssil preservado. E... não é que tinha!!! E não era pouca coisa não! Mesmo no campo, coberto por sedimento, com a terra meio úmida, logo os paleontólogos conseguiram identificar que o crânio estava conectado à um pescoço... e este à uma cintura pélvica (bacia)... e esta numa cauda... e este indivíduo quase completo estava com mais outros crânios e esqueletos!
FIGURA 2 – Foto do fossil encontrado ainda na localidade (acima, à esquerda) e uma reconstituição das partes preservadas dos esqueletos (abaixo, à esquerda). Esquema representativo da disposição dos esqueletos no campo (à direita; os números corresponde a quantidade de indivíduos preservados amontoados).

Se achar um pedacinho quebrado pra nós paleontólogos já é algo interessante, imagine o quão sensacional é achar um crânio e perceber que existe mais coisa ainda ali junto! Passado a euforia, vem a parte chata e braçal: tirar o fóssil do afloramento para levá-lo ao laboratório aonde será preparado e estudado. Querendo preservar o material como estava no campo para extrair mais dados de como os animais teriam morrido, eles fizeram um bloco gigantesco, cerca de 6 metros quadrados e pesando em torno de meia tonelada. Infelizmente, o bloco não agüentou... muito também por causa da chuva que acompanhava os paleontólogos durante a extração do bloco. Sendo assim, o material foi levado em partes para o Laboratório de Paleontologia da FZB. Lá, o Negri começou a montar as partes do bloco e preparar o material durante seis meses. Após isto, o material ficou por algum tempo sem ninguém estudá-lo ou prepará-lo.

A Pesquisa:
Em 2007, outras pessoas entram na história. Numa ligação para o Jorge, Max diz ter um aluno que tinha acabado o mestrado, Marco (no caso, eu), e ele precisava de algum material fóssil para fazer seu doutorado. Acordos feitos, Marco começa seus estudos com este material. Já possuía alguma experiência em preparação e julgou que seria fácil preparar este material. Ledo engano... Na primeira visita à capital gaúcha, já viu que o trabalho de preparação ia ser difícil: o material era envolto por uma concreção férrica muito dura. Como o material fóssil preservado é frágil, esta concreção em volta torna a preparação muito difícil e demorada. Imagine que você tenha que tirar o grafite de dentro de um lápis, mas ao invés de uma madeira mole e fácil de ser removida, este lápis esteja envolto por um material muito mais duro, como um tubo de PVC. Estilete, agulha, ponteira... nada disso sequer riscava a concreção. Começou-se a usar, então, canetas pneumáticas [http://www.paleotools.com/products.html]. O que é isto? São instrumentos muito parecidos com aquele motorzinho de dentista que se usa pra furar o dente e extrais a cárie, mas ao invés de movimentos rotatórios, as canetas que se usam na paleontologia realizam movimentos “pra frente e pra trás”. Mesmo assim, o material era difícil de ser preparado. Havia dias que após 8 horas de preparação, uma área “imensa” menor que uma moeda de um centavo era preparado!!! E não era só isso. Estas canetas pneumáticas possuem tamanhos e intensidades diferentes. Começou com uma de nível 1... ponteira quebrada. Nível 2... ponteira quebrada. Nível 3... ponta gasta em menos de um dia de trabalho. Nível 4, usado em materiais grandes, como fêmur de titanossauro... começou a funcionar. Só que as ponteiras duravam cerca de 15 dias e tinha o risco de quebrar todo o material por conta do alto impacto, isso sem dizer que cada ponteira desta custa cerca de 60 dólares!
            Durante três anos e meio, os fósseis iam sendo preparados e estudados concomitantemente. Até que no final do ano passado, com dados suficientes já em mão, os paleontólogos decidem publicar um artigo com os resultados deste trabalho (França et al., 2011). O material achado se tratava de 9 indivíduos amontoados uns sobres os outros, com três crânio bem preservados, e, à priori, todos pertencentes à uma nova espécie: Decuriasuchus quartacolonia.
FIGURA 3 – Crânios preservados de Decuriasuchus quartacolonia. Dois crânios foram preservados sobrepostos (acima) e o outro um pouco mais isolado (abaixo).

Os animais desta espécie eram carnívoros (possuíam dentes pontiagudos com margens serrilhadas), quadrúpedes e mediam cerca de 2,5 metros de comprimento.
FIGURA 4 – Reconstituição de Decuriasuchus quartacolonia.

Faziam parte um grupo chamado Rauisuchia. O que é isto? Hein?? Senta que lá vem a sistemática... Entre todos os animais vivos atualmente, aves e crocodilos são os mais aparentados entre si, formando um grupo denominado de Archosauria. Estes dois grupos atuais são somente um resquício da Biodiversidade do passado (clichê paleontológico! Hehehe). Os arcossauros se diversificaram durante o período triássico em duas grandes linhagens (Brusatte et al., 2010): uma pró-aviana, denominada de Ornithosuchia e da qual faz parte também os dinossauros (sim, ave é um dinossauro!!!); e outra pró-crocodiliana, denominada de Pseudosuchia e da qual faz parte vários grupos fósseis que se extinguiram no final do período triássico, sendo os crocodilomorfos os únicos sobreviventes. Destes grupos que se extinguiram estão os fitossauros (arcossauros aquáticos, com focinhos alongados), aetossauros (arcossauros encouraçados, possuindo placas ósseas de formatos diversos em suas costas), os ornitossuquídeos (arcossauros com crânios esquisitos, com a mandíbula reduzida em comprimento e a ponta do focinho voltada pra baixo) e os rauissúquios, ou Rauisuchia, do qual esta nova espécie faz parte.
FIGURA 5 – Cladograma representando o parentesco entre os grupos de Archosauria.

Este grupo era considerado até a década de 90 composto por grandes predadores topo de cadeia, quadrúpedes e que tinham morfologia distinta da bacia que permitia uma locomoção mais rápida. Entre os maiores da sua época nos ecossistemas terrestres, podiam medir até 9 metros de comprimento. Existe um crânio na UFRGS de aproximadamente um metro de comprimento, pertencente à espécie Prestosuchus chiniquensis (Barberena, 1978). Durante a década de 90, pesquisadores encontraram animais deste grupo que são bípedes, desprovidos de dentes e provavelmente portando bicos córneos, como nas tartarugas, como Effigia okeeffeae (Nesbitt & Norell, 2006) e Shuvosaurus inexpectatus (Chatterjee, 1993). Mais recentemente, há indícios fortes de que uma das espécies, Qianosuchus mixtus (Li et al., 2006), possuía hábito aquático. Ou seja, Rauisuchia representa um grupo muito mais diverso do que se aparentava até então.
FIGURA 6 – Exemplos de espécies de Rauisuchia, apresentando a diversidade de tamanho e hábitos.

Entre estas novidades está Decuriasuchus. Foram encontrados 10 indivíduos naquele afloramento no município de Dona Francisca, sendo que 9 deles estavam praticamente uns sobre os outros. Como seus esqueletos estão praticamente articulados, pode-se afirmar que eles estavam próximos uns dos outros antes de suas mortes, demonstrando um comportamento social mais desenvolvido do que se pensava: grandes répteis predadores tendem a viverem de forma mais isolada e não em “comunidade”. Este aglomeração de indivíduos pode ter causa e consequências diversas. Estudos apontam que aquela região no triássico era uma planície de inundação, com períodos de secas drásticas e outros de chuvas intensas (Da Rosa, 2005), o que pode ter servido de “refúgio” para estes animais.
FIGURA 7 – Imagem de uma planície de inundação atual com paisagem similar à considerada para a localidade aonde Decuriasuchus foi coletado.

É comum espécies de animais predadores de porte menor, caso do dinossauro Velociraptor, viverem em bando para defesa de predadores maiores ou ainda para caçar em bandos, o que poderia ter acontecido com Decuriasuchus. A verdade é que a resposta dos porquês destes indivíduos estarem juntos é pura especulação, mas é fato que eles viviam próximos uns dos outros. Paralelamente, outros aglomerados da mesma espécie em arcossauros, embora raros, são mais comum em dinossauros jurássico, sendo um comportamento social desenvolvido descrito em vários grupos de dinossauros. No período triássico, afloramentos possuindo vários indivíduos da mesma espécie são mais escassos, sendo descritos em dinossauro terópode Coelophysis bauri do novo México, EUA (Schwartz & Gillette, 1994), em dinossauro sauropodomorfo basal Plateosaurus da europa central (Sander, 1992), e no pseudossúquio Aetosaurus ferratus da Alemanha (Schoch, 2007). Todos estes são datados do Triássico Superior (Noriano-Rhaetiano, aproximadamente entre 220 e 205 milhões de anos atrás). As rochas do afloramento “posto”, aonde foram encontrados Decuriasuchus, são de aproximadamente 235-240 milhões de anos atrás, podendo-se dizer que esta nova espécie é o registro mais antigo de comportamento gregário em arcossauros.
FIGURA 8 – Exemplos de preservação com vários indivíduos em Archosauria. Acima, Aetosaurus ferratus, um Aetosauria (Pseudosuchia) do Triássico Superior da Alemanha; abaixo, Coleophysis bauri, um Dinosauria (Ornithosuchia) do Triássico superior dos Estados Unidos.

            Sobre o nome desta nova espécie, há algumas curiosidades. Decuria/suchus: o termo “decuria” faz referência à unidade do exército romano constituída por 10 soldados, como no caso dos 10 indivíduos achados no afloramento e também em referência à uma estrutura protuberante que existe no osso Nasal compartilhado por algumas espécies do grupo Rauisuchia que foi descrito por Romer (1971) como sendo o focinho tipo nariz romano; já “suchus” é um termo grego que se refere ao deus egípcio com cabeça de crocodilo, fazendo referência ao posicionamento da espécie na linhagem pró-crocodiliana. O nome específico “quartacolonia” refere-se à região no interior do estado do Rio Grande denominada de Quarta Colônia por ser a quarta região à abrigar os imigrantes italianos no século passado e da qual faz parte o município de Dona Francisca, aonde foram coletados os fósseis.

  
Citações Bibliográficas:

Barberena, M. C. 1978. A huge thecodont skull from the Triassic of Brazil. Pesquisas, 7, 111–129.
Brusatte S, Benton MJ, Desojo J, Langer MC (2010) The higher-level phylogeny of Archosauria (Tetrapoda: Diapsida). J Syst Paleontol 8:3–47.
Chatterjee, S. 1993. Shuvosaurus, a new theropod. National Geographic Research and Exploration, 9, 274–285.
Da Rosa AAS (2005) Paleoalterações de depósitos sedimentares de planícies aluviais do Triássico Médio a superior do sul do Brasil: caracterização, análise estratigráfica e preservação fossilífera. Tese de Doutorado. UNISINOS, São Leopoldo.
França MAG de, Ferigolo J, Langer MC (2011). Associated skeletons of a new middle Triassic "Rauisuchia" from Brazil. Naturwissenschaften 98 (5): 389–395. doi:10.1007/s00114-011-0782-3.
Li C, Wu X-C, Cheng Y-N, Sato T, Wang L (2006) An unusual archosaurian from the marine Triassic of China. Naturwissenschaften 93:200–206.
Nesbitt SJ, Norell MA (2006) Extreme convergence in the body plans of an early suchian (Archosauria) and ornithomimid dinosaurs (Theropoda). Proc R Soc B Biol Sci 273(1590):1045–1048.
Romer AS (1971) The Chañares (Argentina) Triassic reptile fauna. VIII. A fragmentary skull of a large thecodont, Luperosuchus fractus. Breviora 373:1–8.
Sander PM (1992) The Norian Plateosaurus bonebeds of central Europe and their taphonomy. Palaeogeogr Palaeoclimatol Palaeoecol 93:255–299.
Schoch RR (2007) Osteology of the small archosaur Aetosaurus from the Upper Triassic of Germany. Neues Jahrbuch für Geologie und Paläontologie. Abhandlungen 246(1):1–35.
Schwartz HL, Gillette DD (1994) Geology and taphonomy of the Coelophysis quarry, Upper Triassic Chinle Formation, Ghost Ranch, New Mexico. Journal of Palaentology 68:1118–1130.

Sobre o autor:



Marco Aurélio de Gallo França é paleontólogo brasileiro, focado atualmente em pesquisas com arcossauros basais, mas já trabalhou com outros grupos fósseis, como tartarugas e dinossauros. Está no doutorado na Bologia Comparada (FFCLRP-USP/Ribeirão Preto), com a orientação de Max Cardoso Langer. Gosta de cerveja, principalmente acompanhada de bons amigos. Para aliviar a tensão, nas horas vagas dedica-se ao samba e a MPB, mas como hobby. Lattes.




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