quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

História da vida: o papel das coletas e coleções biológicas para a humanidade

Por Rafaela L. Falaschi e Lívia R. Pinheiro



             Esse ano que passou foi marcado, para a biologia brasileira, pelo trágico incêndio no Instituto Butantan, além da polêmica envolvendo o biólogo Louri Klehmann Júnior, que foi tratado como criminoso ambiental por ter cometido um erro. Muito desse absurdo se deve ao desconhecimento, ou conhecimento vago, que a sociedade tem de questões básicas relacionadas às ciências, aqui especificamente, às ciências biológicas.

Armadilha Malaise para coleta de dípteros

Ciência não é só para cientistas. Assim como política, economia, música e arte, ciência também é – ou deveria ser – assunto de domínio público. Deveria estar nas rodas de conversa, ser mais uma fonte de conhecimento a ser aproveitada, mas estamos tão acostumados com a mitificação do cientista como um gênio de jaleco e da ciência como curiosidade (ou quase um divertimento), que é pequena a participação da população em geral. Os próprios cientistas também são culpados por esta situação, embora o nível de especialização a que chegamos possa de fato ser reconhecido como um obstáculo a ser superado para a divulgação científica.
Quando a ciência é tida como inatingível, as opiniões dos cidadãos ao seu respeito ficam presas à opinião do cientista que fala mais alto, ou seja, a um argumento de autoridade. Os casos em que opiniões divergentes têm igual destaque são relativamente raros, especialmente se existe um interesse da mídia em privilegiar uma delas. A única forma de nos livrarmos de opiniões de terceiros e formar nossa própria é compreendendo minimamente os elementos envolvidos nas polêmicas, e isto só se faz com divulgação científica apropriada. É com o intuito de fornecer tais subsídios que debateremos a seguir as relações entre o incêndio da coleção do Butantan, a polêmica envolvendo Louri Klehmann Júnior e a ignorância científica.

Comecemos com Louri, tratado pela mídia, pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAPar) e pelo presidente do Conselho Regional de Biologia do Paraná como um criminoso ambiental por ter atirado, com licença dos órgãos competentes estadual e federal para fazê-lo, em duas aves muitíssimo semelhantes às que tinha autorização para matar.
Todo biólogo que precisa obter espécimes para seu estudo passa por uma verdadeira via crucis até conseguir sua autorização de coleta. A burocracia e o tempo de espera até a obtenção da licença é muito variável, dependendo do grupo de interesse (quem estuda mosquitos obtém a sua com maior facilidade que quem estuda mamíferos, por exemplo) e de onde se pretende coletar (a autorização para coleta em unidades de conservação é mais complicada que para áreas não protegidas).

Apesar de fazer todo o sentido limitar o número de espécimes coletados, ainda mais se o grupo se reproduz pouco, como é o caso de muitos mamíferos e das aves, ou se o local que se deseja estudar é área de proteção ambiental, a burocracia que envolve pedidos de autorização de coleta nem sempre é condizente com as diferentes realidades enfrentadas por diferentes biólogos.

Considerando todas as espécies de seres vivos, são raras as coletas que capturam mais que uma ninhada de uma fêmea de uma população[1] por vez. É razoável esperar que, de todos, sejam biólogos os mais indicados a garantir que uma coleta não ameace a viabilidade da população da(s) espécie(s) de seu interesse. Que interesse teria o biólogo de exterminar o grupo ao qual dedica seu tempo de estudo? Ou mesmo de matar sem necessidade?
Louri tinha autorização para coletar exemplares de duas espécies de íbis de plumagem escura, e foi em dois deles que mirou. Para seu azar não eram íbis, mas guarás jovens, cuja pujante plumagem vermelha só aparece depois de adultos. Também para seu azar, o guará é tido como espécie vulnerável no Paraná. Uma vez descoberto o erro de Louri e noticiado de forma a fazê-lo parecer um pesquisador negligente que caça aves por capricho, a opinião pública o considerou culpado de ambas as acusações. Não havia motivo para não fazê-lo, se era o que os jornais incitavam e se o IAPar e o presidente do CRBio da região também o haviam condenado.

Mas não existe algo estranho por trás disso tudo? O que ganharia Louri atirando em uma espécie vulnerável que não é a que lhe interessa, sendo que os espécimes ficariam, de qualquer forma, guardados no museu onde ele realiza seu estudo?
Quase todo biólogo de campo já se deparou com a aversão generalizada à idéia de coletar. Esta antipatia pode se tornar um verdadeiro horror, de acordo com o grupo que se pretende coletar. Ao mesmo tempo em que é difícil ouvir protestos contra a coleta de microorganismos, plantas, lesmas, carrapatos ou grupos que nem nome popular tem (ex.: Priapula, Diplura, Tardigrada[2]), o horror pode se transformar em ameaças se estivermos falando de aves ou mamíferos. “Coitadinho do bichinho, deixa ele lá!” é uma exclamação muito comum, às vezes substituída por sua forma mais autoritária, dita às vezes em tom agressivo “Você não vai matar esse bicho!”. Elas revelam a profundidade da ignorância que cerca a idéia que as pessoas têm das coletas científicas.

Parece razoável supor que a aversão das pessoas à coleta derive da emergência do conceito de responsabilidade ambiental. Seria contraditório pregar o respeito ao meio ambiente e trabalhar com uma profissão associada a isto, e ao mesmo tempo ir ao campo especificamente para coletar – ou matar, ou mesmo assassinar, como preferem alguns – animais indefesos. “Por que ainda não desenvolveram uma maneira de estudar a biodiversidade sem precisar matar mais os animais?”, perguntam os mais indignados. “É mesmo necessário coletar?”, questionam os mais ponderados.
E a resposta é sim, é necessário coletar. Vai ser enquanto houver perguntas que possamos fazer sobre a biodiversidade e, é claro, enquanto houver biodiversidade. Muitas perguntas importantes para a biologia simplesmente não podem ser respondidas somente por meio do estudo de fotografias, vídeos, pegadas, sons, ou com animais vivos em cativeiro por tempo indeterminado. Questões taxonômicas, sistemáticas, evolutivas e biogeográficas, por exemplo, muitas vezes exigem que se trabalhe com espécimes mortos,  por vezes com um grande número de exemplares. Isto também não é contornável, porque são perguntas sobre populações, e só podem ser respondidas com uma ampla amostragem populacional.

Coletar não é, portanto, opcional para muitas áreas da biologia. E nem é a coleta uma ciência exata: os métodos variam de acordo com o que se pretende capturar, e nem sempre vem somente o que se deseja. Seja a coleta passiva (com armadilhas) ou ativa, corre-se o risco de coletar por engano ou acidente algo não planejado. É algo que acontece a todo momento, e muitas vezes independe da experiência do coletor, mas ocorre devido ao desenho da armadilha ou de condições desfavoráveis de caça, como foi o caso de Louri: se já é difícil distinguir jovens guarás de íbis de plumagem escura no laboratório, imagine no mato, em dia nublado e nevoento, à distância necessária para não espantar os pássaros.

Gavetas entomológicas - INPA
Se as coletas não são prescindíveis como muitos gostariam que fossem, restam duas alternativas – continuar protestando contra a realização do nosso trabalho ou compreender sua importância. Para aqueles tentados a dar uma chance à segunda, passemos ao incêndio na coleção do Butantan e ao seu significado.
Ao contrário da polêmica sobre os guarás de Louri, o incêndio trouxe muitas e diversas reações. Mas a grande (e triste) indagação era “se ninguém se feriu por que tanta tristeza por causa de bicho morto? É só pegar mais!”. O laboratório de morfologia e evolução Diptera da USP de Ribeirão Preto recebeu ofertas de aranhas e escorpiões para ajudar a recuperar a coleção do Butantan. Por mais positivo que seja saber que algumas pessoas querem ajudar em algo que consideram tão distante de seu cotidiano, estas ofertas alertam para o total desconhecimento dessas pessoas sobre o que é uma coleção biológica e o que ela representa.
            Coletas e coleções são intrinsecamente ligadas, sendo as últimas o destino final de todo o material reunido em coletas científicas. As coleções são constituídas por conjuntos de organismos (animais, plantas, fungos) coletados e preparados de modo que permaneçam em condições de estudo por centenas de anos.
Diferentes grupos de seres vivos apresentam diferentes necessidades quanto à sua conservação, sendo os meios mais comuns as exsicatas[3], a via úmida[4], inclusão em resina, montagem em lâminas, em alfinetes e a taxidermia. A despeito do modo de conservação, todos os espécimes devem trazer consigo informações sobre a localidade, altitude em relação ao nível do mar, o período do ano em que foram coletados, coletores e outras informações que o coletor julgar relevantes.
Assim, as coleções compreendem um acervo de espécimes que funciona como uma amostra da diversidade existente, a partir da qual podem ser feitas inferências sobre a diversidade biológica. A composição de cada coleção depende das localidades de coleta que os pesquisadores que nela trabalham (e trabalharam) costumam freqüentar, a freqüência com que vão a campo e das condições de acondicionamento dos espécimes. É comum que grandes instituições comprem coleções de instituições menores, de pesquisadores autônomos, ou mesmo de amadores. Cada coleção tem, assim, sua história, composta pelas histórias de cada coleção incorporada a ela e de cada um que trabalhou para formá-la. Não é muito incomum encontrarmos, por exemplo, espécimes que foram coletados em áreas que já não existem mais, seja devido à urbanização ou à destruição do habitat para dar lugar a plantações ou pastagens.
Existe ainda uma outra razão para qualificarmos como absurdo o que aconteceu à coleção do Butantan – a presença de tipos e o risco a que ficaram expostos com o incêndio. Tipo é o espécime que carrega o nome de uma dada espécie. Quando quem descreve uma espécie designa um único indivíduo para carregar o nome daquela espécie, ele é o holótipo. Mas há casos em que mais de um espécime carrega o nome da espécie, e nestes temos não um holótipo, mas dois ou mais parátipos. Mas o que significa exatamente carregar o nome? Imagine uma pesquisadora que, depois de muito trabalho, descobriu que uma espécie de cobra que coletou na caatinga é de fato desconhecida para a ciência. Ela possui somente um indivíduo, mas como se trata inequivocamente de uma espécie nova, ela a descreve com base neste espécime único mesmo. Agora, o espécime – neste caso o holótipo – precisa ser guardado em alguma coleção científica, para que esteja disponível para outros pesquisadores. A pesquisadora resolve depositá-lo no Butantan. Assim, se algum dia alguém coletar uma cobra que se suspeite pertencer à mesma espécie daquela, deve consultar a descrição da espécie e, se possível, o tipo, porque é ele que carrega o nome daquela espécie. Supondo que o tipo tivesse sido destruído pelo incêndio, não haveria com o que comparar o novo espécime, exceto pelas informações disponíveis na descrição da espécie, o que em muitos casos não é suficiente para uma identificação inequívoca da espécie.

Triagem de pequenos insetos

É por isso que, por mais que seja possível recompor de certa forma o acervo da coleção do Instituto Butantan, isto não vai ser suficiente. Com o incêndio perdemos parte de uma coleção que teve a característica ímpar de ter sido formada com a ajuda de anônimos que traziam serpentes e outros animais de todos os cantos do país.
É isto o que o ex-diretor do Butantan falhou em reconhecer em comparar a coleção do instituto a “uma bobagem medieval”, e o presidente do CRBio 7 não ficou muito longe ao tratar coletas científicas como “desnecessárias”. Que tenhamos tido algum sucesso em mostrar aos leitores que isto não é verdade!


[1] População é um grupo de indivíduos de uma espécie que vive em uma dada região geográfica.
[2] Acho que teríamos que colocar fotinhos deles
[3] Usadas nas coleções botânicas.
[4] Geralmente álcool a 70%, mas as concentrações podem variar; são também utilizados formaldeído e formalina para alguns grupos.

Fotos: Arquivo pessoal.

2 comentários:

  1. Se a gente não tem apoio das próprias autoridades envolvidas com ciência, imagina da população!

    ResponderExcluir
  2. Por acaso encontrei esse artigo pesquisando "coletas" no google, não era o tipo de tema de coleta que buscava, mas como achei interessante li o artigo e digo, realmente existem entraves burocráticos e divergência de opiniões no tema, particularmente entendo a posição de biólogos e de pessoas que são contra as coletas, mas, afirmo, tem que haver controle, há algum tempo atrás ouvi um biólogo(ligado a Unimontes de Montes Claros-MG) dizer em um bar que ao participar de uma coleta foi dado 100 tiros e derrubado 96 pássaros, que o mesmo é bom de tiro não resta dúvida, agora resta saber se ele é bom de serviço.

    ResponderExcluir