Por
Luiz Fernando F. Gelin
O primeiro passo para a sabedoria é conhecer as
coisas por elas mesmas; essa noção consiste em ter a verdadeira ideia do
objeto; objetos são distinguidos e conhecidos pela sua classificação
metodológica e nomenclatura apropriada; dessa forma a Classificação e
Nomenclatura será a base da nossa Ciência.
Carl von Linee, 1735
Capa do
Systema Naturae (Carl von Linee, 1735)
O ano de 2010 foi
declarado pela Organização das Nações Unidas como ano internacional da
Biodiversidade. Com isso, um dos principais objetivos da ONU é trazer à tona a
importância da conservação da Biodiversidade. Mas como fazer isso sem
conhecê-la? O que conhecemos da biodiversidade? Há quase 300 anos,
Lineu sugeriu um modo de documentar a biodiversidade, a simples nomenclatura
ajudaria a partir daí gerações e gerações de naturalistas na descrição e
documentação das espécies de seres vivos.
Durante os séculos XVIII, XIX e início do
século XX, muitas expedições científicas foram realizadas. Naturalistas
partiram pelo mundo e descreveram a maior parte de espécies que temos registro
hoje. Atualmente, porém, profissionais que se dedicam a esse tipo de pesquisa
são escassos. Mas, por quê? Já conhecemos a vida em toda sua extensão? Segundo
o professor emérito de Harvard, Edward O. Wilson, não conhecemos sequer a ordem
de grandeza do número de espécies que vivem na Terra. Em relação aos insetos,
por exemplo, acredita-se que existam aproximadamente 1 milhão de espécies
descritas, e estima-se um total entre 2 milhões e 30 milhões de espécies
existentes. Ou seja, sendo muito otimista, 50% das espécies de insetos
existentes foram descritas. Entretanto, sendo mais realista, entre 3% e 10% são
conhecidas pela Ciência.
Com o avanço das Ciências tanto tecnológico como
teórico, os pesquisadores deixaram de se preocupar com o básico. A
importância da taxonomia parece-me que foi esquecida pela maior parte da
comunidade científica. Um dos principais argumentos é que a taxonomia não
possui perguntas e hipóteses testáveis, o que a torna, sob o ponto de vista de
alguns, desinteressante e menos importante que, por exemplo, estudos que
envolvam ecologia experimental ou evolução molecular. Não quero tirar o mérito
desses estudos, mas sim mostrar que a taxonomia merece credibilidade, ao menos,
tanto quanto eles.
A taxonomia surgiu como a ciência que dá nome aos
seres vivos. Apesar de ser tida como uma ciência puramente descritiva, a
taxonomia tem suas hipóteses e metodologias adequadas para testá-las e vai
muito além da descrição de espécies. Uma vez que se tem um objeto, é preciso
compará-los com uma classe de objetos previamente identificados e descritos a
fim de se confirmar a hipótese de que é a tal espécie. Portanto, a própria
espécie é uma hipótese, cabe ao taxonomista comparar características e
corroborar ou refutar a espécie, caso refute o caminho natural é descrevê-la
como nova. Mas não para por aí, a taxonomia também está interessada em revelar
as relações de parentesco entre essas espécies comparando caracteres. Dessa
forma, juntando-as em grupos por suas semelhanças, e criando diferentes níveis
hierárquicos. Tanto esses grupos, quanto essas semelhanças são hipóteses
a serem testadas. A simples descrição e comparação de espécies são o primeiro
passo para o estudo das relações entre elas, e formam uma hipótese primária de
parentesco, base para a construção de árvores da vida. Ainda que bem
esclarecidos, muitos pesquisadores parecem não perceber que a taxonomia vai
além da descrição. Por si só, o caráter descritivo já é importante, e é através
da taxonomia que podemos nos referir a milhões de espécies já descritas, que
sabemos onde estão e por que ali estão, que podemos explorar a evolução da
vida. Isso faz dela uma ciência única e independente.
Agora, mais do que nunca, estamos vendo os
resultados do esquecimento da mais antiga e fundamental das ciências. Os
problemas com os quais nos deparamos hoje já foram alertados há 25 anos quando
Wilson introduziu o termo “crise da biodiversidade” dizendo, em resumo, que a
diversidade está sendo perdida antes que a conheçamos. De fato, muitas espécies
foram e continuam sendo extintas sem terem sido descritas. Outra consequência
dos problemas mencionados, ficou conhecida como “impedimento taxonômico”.
Muitos cientistas se depararam com esse problema: estudar a biologia,
comportamento, história natural de alguma espécie que carece de descrição.
Milhões de espécies permanecem sem descrições.
Apesar de notáveis, os problemas que a falta da
taxonomia trazem para a ciência parecem invisíveis aos olhos da comunidade
científica. Com a falta de financiamento, pesquisadores são desestimulados a
trabalhar em taxonomia, o que torna a carreira do taxonomista criticamente
ameaçada de extinção. Essa extinção leva ao abandono de Museus de História
Natural, Museus de Zoologia, Herbários e Jardins Botânicos e do acervo da vida
já coletado. Estes centros possuem grande apelo estético que aflora nossa
biofilia – sentimento intrínseco do ser humano pela natureza – e desempenham
importante papel na educação e conscientização dos cidadãos de todas as
gerações. Em um contexto de estudos científicos, os museus são espaços
fundamentais para os estudos taxonômicos e funcionam como um arquivo de toda a
biodiversidade conhecida. Para continuar mantendo seu papel, os museus precisam
ter seus acervos bem conservados e atualizados. Cabe citar aqui a importância
das revisões taxonômicas, através delas os dados depositados em museus, que não
foram estudados ou que foram estudados há tempos, são trazidos à tona e
organizados, revisados, comparados. A importância dessas revisões não está
apenas relacionada à história natural das espécies ou grupos de espécies, mas
também à história dos ambientes em que vivem (ou viveram) e até as mudanças
geológicas e climáticas desses ambientes, pois além do ser coletado,
as etiquetas trazem preciosas informações que nos levam a tais inferências. Sem
a taxonomia deixamos de desvendar a vida.
É evidente o estado crítico em que esta ciência se
encontra. Já é passada a hora de conscientizar novas gerações de cientistas e
não podemos deixar de chamar a atenção de futuras gerações (não só de
cientistas), pois quando a base da nossa ciência é ameaçada tudo que por ela é
sustentado pode desabar. Já disse o taxonomista Quentin Wheeler “o custo de
continuar a ignorar as necessidades da taxonomia é infinitamente maior do que o
financiamento e a atenção que a taxonomia precisa nesse momento”.
“Nossa geração é a primeira a realmente
compreender o problema da crise da biodiversidade e a última com a oportunidade
de explorar e documentar a diversidade de espécies do nosso planeta” (Wheeler,
Raven & Wilson).
Para ler:
Diversidade da Vida, Edward O.
Wilson, Cia das Letras, 1994.
Sobre o autor:
Luiz Fernando F. Gelin é formado
em biologia pela Unesp, campus de São José do Rio Preto, onde conheceu
Lineu, Darwin, Wallace, Hennig e Wilson além de outros
naturalistas e acabou entrando no mundo da evolução, da taxonomia e dos
insetos. Realizou seu mestrado no programa de Biologia Animal da mesma
instituição, investigando as relações de parentesco entre as espécies de um
gênero de vespas sociais (tambem conhecidas como marimbondos ou cabas). Algumas
ferroadas depois, tornou-se aluno de doutorado e dá continuidade ao estudo da
taxonomia e evolução, através da morfologia e dos genes, desses temidos insetos
com comportamento intrigante. Lattes.
Em "Evolution of the Insects" encontrei a seguinte citação "Saber o nome das coisas é o primeiro passo para conhecê-las". Não sei se é so impressão minha, mas tenho achado que estamos pulando etapas no desenvolvimento da ciência, o que reflete diretamente na história da humanidae. É impossível trabalhar para os fins, se não sabemos por onde começar.
ResponderExcluirGostei muito do seu blog. Quando quiser da uma passada no meu pra conhecer.
ResponderExcluirUm abraço
Importantíssima essa abordagem sobre o valor da Taxonomia para toda a ciência. Que os pontos levantados no texto despertem os futuros cientistas, curiosos, insaciáveis pelo conhecimento, para a beleza de se descobrir o novo e, principalmente, para a beleza de se estudar a vida e tudo o que a compõe.
ResponderExcluirFicamos muito felizes com a participação de todos! É através de comentários, críticas, apreciações que podemos aprimorar a nossa idéia. Sendo a taxonomia alicerce tão fundamental não só para os estudos biológicos, mas para toda a organização nominal do mundo natural e seus usos achamos por bem trabalhar bastante nessa linha, e não só pela maioria de nós trabalhar com taxonomia! :)
ResponderExcluirAbraços